segunda-feira, 25 de junho de 2018

Cristianismo com um Sotaque Wesleyano - Kevin Watson

Por Kevin Watson

Parte Um - Cristianismo Básico

Eu amo sotaques! Eu poderia ouvir alguém de Boston dizer “Harvard” o dia todo. Eu poderia ouvir alguém da Inglaterra dizer “cheers” e nunca deixar de ficar intrigado. Os sotaques são interessantes para as pessoas que falam a mesma língua porque destacam a real diferença (os outros parecem realmente diferentes ou eu pareço realmente diferente deles), mas há também uma mesmice significativa, porque eu posso (na maior parte) me comunicar facilmente com a pessoa. Os falantes de inglês dos Estados Unidos e da Irlanda falam a mesma língua, mas o fazem com clara diferença.
Sotaques também são uma imagem útil para pensar sobre as diferenças entre denominações cristãs ou tradições teológicas. Esta imagem fornece um lembrete útil de que existem diferenças reais entre as tradições teológicas, mas que essas diferenças não devem se tornar tão pronunciadas que as pessoas estejam proclamando o fundador de sua tradição particular ao invés de proclamar Jesus Cristo.
Um dos temas de 1 Coríntios é o aparecimento de sinais de desunião na igreja, onde as pessoas começaram a enfatizar a lealdade aos líderes contemporâneos, e não a Jesus. No primeiro capítulo de 1 Coríntios, Paulo nomeia isso e chama a igreja em Corinto de volta à unidade em Jesus Cristo. Paulo escreveu:
Agora eu encorajo vocês, irmãos e irmãs, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo: Concordem uns com os outros e não sejam divididos em grupos rivais. Em vez disso, sejam restaurados com a mesma mente e o mesmo propósito. Meus irmãos e irmãs, os da casa de Cloe me deram algumas informações sobre vocês, que vocês estão lutando entre si. O que isso significa é que cada um de vocês diz: "Eu pertenço a Paulo", "eu pertenço a Apolo", "eu pertenço a Cefas", "eu pertenço a Cristo". Cristo foi dividido? Paulo foi crucificado por vocês ou vocês foram batizados em nome de Paulo? (1 Coríntios 1: 10-13, CEB)
Esta passagem fornece um lembrete útil hoje de que o primeiro objetivo de qualquer tradição cristã é chamar as pessoas para seguir a Jesus, e não outra pessoa. Os cristãos wesleyanos, então, não devem proclamar uma fé diferente de seus irmãos e irmãs católicos, calvinistas ou luteranos em Cristo. Pelo contrário, eles devem proclamar Cristo de uma forma que é na mesma língua, mas soa um pouco diferente para outras partes do corpo de Cristo. Os wesleyanos falam a linguagem da ortodoxia cristã histórica com um sotaque wesleyano.
E, de fato, o próprio John Wesley argumentou que o metodismo nada mais era do que o cristianismo básico. Em “Thoughts upon Methodism” [Pensamentos sobre o Metodismo], um ensaio que ele escreveu nos últimos anos de sua vida, Wesley descreveu o que ele viu como as chaves para a vitalidade espiritual contínua do povo chamado Metodista. Wesley escreveu:
“Não tenho medo de que as pessoas chamadas metodistas deixem de existir na Europa ou na América. Mas tenho medo de que eles devam existir apenas como uma seita morta, tendo a forma de religião sem o poder. E isso, sem dúvida, será o caso, a menos que mantenham a doutrina, o espírito e a disciplina com os quais eles se manifestaram. ”(John Wesley,“ Thoughts on Methodism ”, edição bicentenária das obras de John Wesley , 9: 527)
Wesley estava argumentando (talvez pudesse ser visto como uma profecia) que o movimento wesleyano seria um movimento do Espírito de Deus somente enquanto se mantivesse firme em sua doutrina básica, espírito e disciplina. (Esta é a primeira de uma série de quatro partes sobre o cristianismo com sotaque wesleyano. Os próximos três posts irão detalhar o que Wesley quis dizer com cada um deles.) Seria um mal-entendido ver essa passagem como um apelo para ser diferente de outros cristãos, lutando por sua própria causa. Na verdade, Wesley aborda proativamente esse mal-entendido em potencial no final deste breve ensaio. Ele escreveu: “A partir desse breve esboço do Metodismo (assim chamado) qualquer homem de entendimento pode facilmente discernir que é apenas uma religião escriturística clara, guardada por algumas poucas regulamentações prudenciais” (“Thoughts upon Methodism”, 9: 529).
A principal prioridade de John Wesley, então, não era seu sotaque! Seu principal objetivo era proclamar Cristo e ajudar as pessoas a chegarem à fé em Jesus e crescerem em santidade. Wesley não estava tentando ser diferente, ou levar as pessoas a segui-lo em vez de Jesus. Ele estava tentando apontar as pessoas para a "religião escriturística [bíblica] simples".
Wesley afirmou isso ainda mais claramente em outro ensaio:
“Estas são as marcas de um verdadeiro metodista. Somente por estas, desejam se distinguir de outros homens. Se alguém disser: "Ora, estes são apenas os princípios fundamentais e comuns do cristianismo ". Essa é a verdade mesmo. Sei que não são outras , e quero que Deus e todos os homens saibam que eu, e todos os que seguem a minha opinião, recorram veementemente a serem distinguidos de outros homens, a não ser pelos princípios comuns do cristianismo - o claro e antigo cristianismo que eu ensino, renunciando e detestando todas as outras marcas de distinção.”(O Caráter de um Metodista, 9:41, ênfase minha)
Os wesleyanos, no nosso melhor, recusam ser distinguidos dos outros por qualquer coisa que não seja o cristianismo básico. Mas dentro desse "cristianismo básico" há um sotaque. Quando os wesleyanos leem a Bíblia (que para nós é o principal lugar onde o “cristianismo básico” é encontrado), nós ouvimos um chamado para sermos profundamente renovados pela graça de Deus. Vemos que por causa da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo, o pecado não reina mais e não é mais necessário para aqueles que estão em Cristo. Os wesleyanos, então, são mais apaixonados em contar às pessoas sobre Jesus e ajudá-las a viver o tipo de vida que Jesus tornou possível para elas viverem.
Em resumo, nosso sotaque wesleyano pode ser visto e ouvido na crença de que Deus quer nos tornar santos, agora, nesta vida . Essa convicção está no cerne da doutrina wesleyana, infundido no espírito do metodismo primitivo, e numa abordagem prática para se tornar santo traçada na antiga disciplina metodista. Nós não temos o monopólio da santidade dentro do cristianismo. Mas os wesleyanos às vezes são tão apaixonados por isso que soamos quase tão diferentes para pessoas de fora quanto um irlandês faz em Oklahoma.
 O próximo post discutirá o modo como os wesleyanos pregam, ensinam e proclamam a doutrina cristã com um sotaque particular.
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Ver o artigo em inglês aqui.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Comentários sobre o Artigo de Heber Carlos Campos chamado A Graça Preveniente na Tradição Arminiana/Wesleyana (Parte 1)

    O texto de Heber Carlos de Campos tem um tom muito educado quanto às críticas que ele faz ao cerne do pensamento armínio-wesleyano, que é a graça preveniente, e muito acurado na elucidação que ele aborda o tema. Sinceramente, Campos demonstra um entendimento correto e cumpriu o propósito essencial de qualquer análise crítica de um pensamento oposto ao seu, que é ir direto às fontes primárias. Ele escreveu duas partes, sendo que trataremos da primeira parte de sua resenha. Campos trabalha exclusivamente com autores armínio-wesleyanos. Não menciona arminianos clássicos (como Robert Picirilli, Leroy Forlines, Mathew Pinson e outros). Você pode conferir a resenha do Heber Carlos Campos aqui.
    Campos começa sua resenha crítica separando os conceitos de graça comum (calvinista) da graça preveniente (arminiana). A primeira não tem propósito salvífico, algo que tem na segunda. Ele aborda muito bem a questão que a graça preveniente não leva necessariamente a pessoa a crer, mas esta crê por causa daquela. O resenhista cita o teólogo wesleyano Jeff Paton, que afirma: "sem a graça ou o poder para crer nenhum homem jamais creu ou pode crer".
    O autor assevera que os arminianos respondem a pergunta sobre o porquê de nem todos crerem, já que todos recebem a graça preveniente, afirmando que é por causa do uso devido ou indevido da liberdade da vontade, a tônica da antropologia libertária.
    Campos dilui um entendimento errado que muitos calvinistas têm para com o arminianismo (seja o clássico ou o wesleyano), que é a falsa afirmação que os arminianos creem numa depravação parcial. Campos afirma que Calvino e Wesley têm posições parecidas quanto à questão da depravação humana, ou seja, ambos creem na depravação total.
    O resenhista destaca que a justificação apenas pela fé está para o luteranismo assim como a graça preveniente está para o wesleyanismo. Campos cita o teólogo metodista Robert Chiles, que assevera em seu livro Theological Transition in American Methodism que sem o conceito de graça preveniente, o calvinismo é irrefutável.
    No seguimento de sua resenha, Campos afirma que a depravação total vai perdendo força com a atuação da graça preveniente ao ser destinada a todas as pessoas. Aqui houve uma crítica velada ao entendimento arminiano (seja das duas vertentes), pois o resenhista deixa a entender que a depravação já não é mais total com a atuação da graça preveniente. A questão é que todo homem sem a graça está totalmente incapacitado de responder o Evangelho. Não há nada demais, ao meu ver, em a depravação já não ser total com a graça. Errado seria se o arminianismo advogasse que  a depravação total não existisse antes da graça preveniente.
    Campos afirma que o wesleyanismo surgiu no meio anglicano. Com isso, houve duas interpretações do artigo sobre o livre-arbítrio dos 39 Artigos de Fé da Igreja Anglicana. Uma era a interpretação católica (anglo-católica) e a outra era a interpretação calvinista. Os calvinistas, declara o resenhista, não ficaram contentes quando o artigo evoca que a graça coopera quando temos boa vontade. Já o entendimento católico se coadunava com essa interpretação do décimo artigo, sendo a interpretação que Wesley adotava.
    O resenhista cita João 1:9, João 12:32 e Tito 2:9 como provas bíblicas que os armínio-wesleyanos usam para validar biblicamente a graça preveniente, assim como todos os versículos bíblicos que os arminianos se baseiam quanto à expiação universal. Contudo, Campos, citando Millard Erickson, critica o embasamento bíblico armínio-wesleyano da graça preveniente afirmando que ela  não se encontra nas Escrituras. Campos cita até Clark Pinnock, que afirmou isso também. Entretanto, recomendo o livro do pastor assembleiano Valmir Nascimento chamado Graça Preveniente,  publicado pela editora Reflexão para a verificação de um respaldo bíblico acerca da graça preveniente.
    Campos menciona a citação de Wesley sobre ninguém neste mundo ser destituído da graça preveniente, pois ninguém está no seu estado de natureza sem a influência da graça. É preciso destacar que esse é o entendimento armínio-wesleyano da graça preveniente. O arminianismo clássico entende que é só pela pregação do Evangelho que a graça preveniente atua libertando o arbítrio da pessoa para que ela possa crer se quiser.
    O trecho do escrito de Campos, a saber, "portanto, na teologia arminiana/wesleyana, o pecado de Adão, por causa da graça preveniente, nunca traz mais qualquer condenação ao pecador", não é preciso, pois dá a entender que a teologia arminiana não advoga mais condenação a ninguém. 
    O resenhista afirma que Wesley em momentos de seus escritos se aproxima do entendimento calvinista sobre o momento da irresistibilidade da graça preveniente e em outros momentos se aproxima do entendimento semipelagiano católico e arminiano protestante. Ele cita Wesley afirmando que em alguns a graça é irresistível. Sobre isso, é mister destacar que Wesley pensava, como muitos arminianos hoje pensam, que a graça preveniente é, a princípio, irresistível, pois ela não pede o consentimento de ninguém para atuar libertando o arbítrio de todas as pessoas para que possam crer no Evangelho e serem salvas. Campos cita Paton acerca disso. Somente nesse momento inicial ela é irresistível. Posteriormente, quando o arbítrio humano é liberto, ela não é mais irresistível. Sobre Wesley afirmar que em alguns a graça salvífica é irresistível, ele dá a entender isso mesmo em um texto que ele escreveu para apaziguar os ânimos com seu amigo calvinista George Witheifield. Contudo são somente alguns poucos que a graça salvífica é irresistível (Wesley mesmo diz que não pode provar isso), mas que na grande maioria das pessoas a graça salvífica atua de forma resistível. Campos cita o metodista Gregory Neal, que afirma que a graça irresistível não é nem graça nem dom.
    O resenhista menciona Gênesis 6:3 e João 6:39,44 como usados pelos arminianos para defenderem sua doutrina. Em Gênesis 6:3, Campos salienta que os arminianos declaram que o homem luta com Deus e pode vencê-lo. A respeito de João 6:39, 44 são versos acerca da atração da graça preveniente.
    Campos cita novamente Paton, que menciona Gálatas 2:21 e Hebreus 10:29 sobre a questão da luta humana que pode desembocar na salvação. Cita mais uma vez Paton que, segundo Campos, afirma uma via média entre o calvinismo e o libertarianismo ao declarar que o homem natural não é livre para responder por si mesmo. A questão é que este é o entendimento intrínseco do arminianismo.
    O resenhista menciona que para Wesley a soberania de Deus não é o mais importante. Grosso modo, podemos até concordar com Campos. Wesley destacava sim mais o amor de Deus do que sua soberania. A respeito disso, destaco o livro do metodista livre Don Thorsen chamado Calvino x Wesley e publicado pela editora Carisma, onde, em um dos capítulos, Thorsen destaca essa ênfase de Wesley mais no amor de Deus do que na sua soberania.
    Campos salienta que a graça preveniente livrou Wesley da acusação de salvação pelas obras. Ele destaca também que Wesley entendia que sem a graça preveniente o homem não é responsável, porque não pode responder ao chamado salvífico de Deus. Com ela, o homem se torna indesculpável, pois os efeitos do pecado original foram diminuídos.
    O resenhista destaca que para os arminianos a morte de Cristo anula o pecado original em todos os seus efeitos. Contudo, desconheço qualquer arminiano afirmar isso, nem em Armínio nem em Wesley. Seria bom se Campos citasse fontes dessa sua declaração.
    Campos cita o famoso teólogo wesleyano do século XIX John Miley, que declara que todos os homem são redimidos. Campos salienta que é melhor ter afirmado que todos os homens são redimíveis. Neste ponto, seria preciso ver a citação de Miley no original em inglês para uma melhor análise.
    O resenhista cita Kenneth Grider, que cita um evangelista (que Campos não cita o nome, mas é o evangelista nazareno Bud Robinson) afirmando que Deus vota a favor do homem, o diabo vota contra o homem, mas o homem tem o poder decisivo. Vendo a citação na obra de Grider, entendo que ele não consentia com essa declaração, mas somente a citou. Claramente, este é um entendimento errôneo acerco do arminianismo (seja de qualquer vertente). Roger Olson critica esse falso entendimento arminiano no seu livro Teologia Arminiana - Mitos e Realidades publicado pela editora Reflexão.
    Mais à frente, Campos cita a teóloga Mildred Bangs Wynkoop, que declara que a graça possibilita ser ela mesma rejeitada. Campos entende que isso é fazer com que a graça lute contra si mesma. Este entendimento é quando não se tem um entendimento libertário da vontade humana, ou seja, que não crê que o ser humano tem vontade livre, tendo somente a vontade orquestrada por Deus. Entendimento este de Campos.
    Campos cita Kenneth Jones, que declara que o Espírito Santo atua com a graça preveniente tão logo a criança possa entender qualquer coisa. Seria melhor entendido quando explicado que a graça preveniente atua libertando o arbítrio humano tão logo a criança alcança a idade da razão.
    O autor cita metodistas liberais (ou progressistas) que creem que a graça preveniente salva pessoas que nunca ouviram o Evangelho independente delas crerem ou não. Estas são salvas somente por contemplarem as obras da criação. Ele cita Wesley Ariarajah, que afirma que a tarefa evangelística é ajudar as pessoas a se moverem da graça preveniente para a graça salvadora, já que todas são salvas. É preciso destacar que uma parcela do metodismo aderiu à teologia liberal, sendo que a maior parte não é liberal, mas sim conservadora.
    Em sua conclusão da primeira parte do seu artigo sobre a graça preveniente no pensamento armínio-wesleyano, Campos critica os arminianos ao afirmar que a graça preveniente é apenas um arranjo para suavizar os efeitos do pecado nos homens e que é incrível como a graça possa ser dada para a própria desgraça do que a recebe. A questão é que qualquer coisa que pode ser dada, pode se transformar em uma coisa boa ou má. Isto vale para o dinheiro, carro e até um cônjuge!
    Em um próximo artigo, comentarei acerca da segunda parte da resenha de Campos. Saliento novamente que Campos fez um bom trabalho, a despeito de algumas críticas que ele fez que são até normais, haja vista ele ser de tradição reformada.

Marlon Marques
    

    

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Graça santificadora

O tema “santidade” é um dos mais importantes dentro da tradição wesleyana. Wiley cita a visão apaixonante do Bispo Foster acerca do assunto em questão: “A santidade pulsa na profecia, ressoa na lei, murmura nas narrações, irradia na poesia, vibra nos salmos, fala nos símbolos, resplandece nas imagens, articula-se na linguagem, e arde no espírito de todo o sistema, desde o alfa até o ômega, desde o princípio até o fim. Santidade! Santidade oferecida! Santidade necessitada!”[1]
James Hsting, ministro presbiteriano que faleceu em 1922, dizia que santificação é “a obra do Espírito Santo de Deus que livra os homens da culpa e do poder do pecado; que os consagra para servir e amar a Deus e que compartilha, inicial e progressivamente, os frutos da redenção de Cristo e as virtudes da vida santa.”[2] O Catecismo de Westminster, que segue a mesma confissão soteriológica de Hsting, diz: “... É a obra da gratuita graça de Deus, pela qual somos renovados em todo nosso ser à imagem de Deus, e capacitados mais e mais para morrer para o pecado e viver para a justiça.”
Para Timothy Jenney, teólogo pentecostal, a santificação “é o processo mediante o qual Deus está puri­ficando o mundo e os seus habitantes. Seu alvo derradeiro é que tudo, tanto as coisas animadas quanto as inanimadas, seja purificado de qualquer mancha de pecado ou de impure­za.” Ele prossegue, explicando que, “Com essa finalidade, Ele tem proporcionado os meios de salvação mediante Jesus Cristo. E, no fim dos tempos, Ele pretende consignar ao fogo tudo quanto não pode ou não quer ser purificado (Ap 20.11 - 21.1; ver também 2 Pe 3.10-13), e assim tirar da Terra tudo o que é pecaminoso.”[3]
Para começarmos, é importante destacar que Wesley fazia distinção entre a justificação e a santificação da seguinte maneira: “Pela justificação somos salvos da culpa do pecado e restaurados para o favor de Deus; pela santificação somos salvos do poder e da raiz do pecado e restaurados à imagem de Deus.”[4] Apesar de a graça santificadora ser a que procede a justificadora nos estágios da graça, William Greathouse comenta que a santificação começa com a graça preveniente.[5] Isso se dá porque sem a capacitação do indivíduo para entender o Evangelho, bem como sem a capacitação de responder a essa oferta, não haveria santificação. A santificação, tal qual a santificação, é recebida pela fé:

Eu tenho continuamente testificado, em público ou privado, que nós somos santificados, assim como justificados, através da fé. E, de fato, uma dessas grandes verdades, ilustra grandemente a outra. Exatamente como nós somos justificados pela fé, nós somos santificados pela fé. A fé é a condição; e a única condição da santificação, exatamente como é da justificação. É a condição: ninguém, é santificado, a não ser aquele que crê; sem a fé, nenhum homem é santificado. E esta é a única condição: apenas esta é suficiente para a santificação. Todos que crêem são santificados, o que quer que tenham ou não. Em outras palavras, nenhum homem é santificado, até que ele creia: todo homem que crê é santificado.[6]

Justificação
Santificação
Obra de Cristo “por nós”
Obra efetuada “em nós”
É um ato judicial
Uma transformação espiritual
Mudança condenação p/ absolvição
Mudança pecado p/ santidade
Dá a remissão dos pecados atuais
Limpa do coração a depravação
Remove a culpa do pecado
Destrói o poder do pecado
Torna possível a adoção
Restaura a imagem de Deus
Dá o direito do céu
Torna-nos aptos para o céu
É posicional e instantânea
É posicional e processual

De fato, a necessidade de vencer o pecado e de viver em santidade é uma doutrina completamente bíblica e aparece em toda a Escritura. Mas de um modo interessante, a Igreja Primitiva é exortada a praticá-la em todas as epístolas. Os romanos são exortados a se tornarem servos da justiça para a santificação (Rm 6.19); Os coríntios são advertidos a não praticarem obras como devassidão, idolatria, adultério, homossexualismo, furtos, avareza, bebedice e maledicência, pois foram lavados, santificados e justificados em Cristo (1 Co 6.9-11). Assim sendo, eles deveriam se aperfeiçoar no processo de santificação (2 Co 7.1);
Os gálatas foram prevenidos sobre uma série de obras carnais que não deveriam praticar (Gl 5.19-21); Os efésios foram instruídos a se revestirem do novo homem que foi criado para santidade, deixando, portanto, uma série de obras pecaminosas (Ef 4.20-31); Os filipenses foram aconselhados a se tornarem irrepreensíveis, sinceros e imaculados (Fp 2.14,15); Os colossenses deveriam exterminar as inclinações carnais. E a lista não era pequena (Cl 3.5-10); Os tessalonicenses foram notificados de que deveriam cumprir a vontade de Deus: a santificação. Quem rejeitasse essa doutrina estava rejeitando o próprio Deus (1 Ts 4.1-8). A conduta deles não deveria ser desordenada, mas segundo a tradição de santidade que receberam (2 Ts 3.6,7);
Timóteo foi instruído a seguir a caminhada cristã sem mácula e irrepreensível (1 Tm 6.13,14), afastando-se da injustiça (2 Tm 2.19); Tito recebeu uma verdadeira revelação: a de que a Graça de Deus se manifestou ensinando-nos que devemos renunciar à impiedade e às paixões mundanas, a fim de esperarmos o aparecimento da glória de Deus (Tt 2.11-13). Filemom deveria esquecer-se das mágoas passadas e Paulo sabia que ele obedeceria essa direção fazendo ainda mais do que era pedido (Fm 1.21); Os hebreus deviam deixar todo pecado e resisti-lo com todas as suas forças (até o sangue), afinal, sem santidade ninguém verá o Senhor (Hb 12.1,4,14);
Tiago mostra a necessidade de suportarmos as provações e diz que somos tentados segundo nossas próprias concupiscências. Sendo assim, precisamos ser vigilantes, caso contrário, essas cobiças inerentes de nossa natureza caída podem consumar o pecado, gerando morte (Tg 1.12-15); Pedro diz que os crentes não devem se conformar com as concupiscências da vida passada, mas que devemos ser santos em todo o nosso procedimento, pois quem nos chamou é Santo (1 Pe 1.13-16). Ele diz, ainda, que alguns irmãos não haviam buscado com diligência as virtudes do Espírito, esquecendo-se da purificação dos seus antigos pecados (2 Pe 1.5-9);
João disse que todos nós pecamos. Entretanto, isso não quer dizer que o pecado é habitual, mas acidental, pois aquele que é nascido de Deus não pode continuar pecando. Se pecarmos acidentalmente, temos um Advogado Fiel e Justo que nos perdoa e purifica dos pecados e de toda injustiça (1 Jo 1.9,10; 2.1; 3.1-9); Na segunda epístola, ele diz que quem vai além do ensino de Cristo não é de Deus. Originalmente ele se referia aos gnósticos. Mas a passagem pode abranger mais situações dos nossos dias. Se alguém vai além do ensino de santidade ao Senhor, induzindo a igreja ao pecado, obviamente o tal não é de Deus (2 Jo 9). Em sua terceira carta ele diz a Gaio que não imite as obras do mal, mas as de Deus, fazendo o bem (3 Jo 11);
Judas lembra das palavras dos Apóstolos sobre os homens dos últimos tempos: escarnecedores, de ímpia concupiscência, que causam divisões, são sensuais e sem o Espírito. Mas os crentes deveriam se conservar no amor de Deus, confiando nAquele que é poderoso para guarda-los de tropeçar e para mantê-los imaculados e jubilosos (Jd 17-24); Até mesmo o Apóstolo João disse em Apocalipse que ficarão de fora os cães, os feiticeiros, os adúlteros, os homicidas, os idólatras e todo o que ama e pratica a mentira (Ap 22.15).
Conforme já deixamos bem definido, a regeneração era o princípio da santificação para Wesley. Entretanto, o wesleyanismo mais moderno, oriundo do movimento de santidade, acabou postulando que existem duas etapas de santificação, uma inicial que ocorre na primeira bênção e outra posterior, também chamada de segunda bênção. Entretanto, como já está assinalado, a santificação, para Wesley, ocorre no novo nascimento, fenômeno espiritual que ocorre simultaneamente com a justificação. É como Noble explica: “não se pode ser um cristão sem estar santificado. A santificação pode não ser completa ou ‘inteira’ neste ponto, mas ela já começou.”[7]
A respeito dessa visão de duas “bênçãos,” que foi postulada nos dias de Asa Mahan e Charles Finney, Noble ainda destaca que muitos prononentes do movimento de santidade acabaram deixando passar a errônea idéia de que o cristão que ainda não havia recebido a primeira bênção poderia pecar regular e voluntariamente até que a segunda bênção os tirasse dessa vida de destruição e os trouxesse para uma vida de vitória. Com certa indignação o Dr. Noble até faz sua reclamação de que essa visão distorcida da santificação “permanece uma crença teimosamente persistente, popularmente falando. Porém, não se trata do ensinamento de Wesley!”[8]
Em outras palavras, a regeneração é o ponto de partida, ela dá a largada para a santificação, que por sua vez possui um caráter gradual, no qual o cristão deve crescer continuamente na graça até atingir a estatura do varão perfeito. Tanto que Wesley gostava da expressão latina moi progressus ad infinitum (meu progresso é sem fim).[9] Oden complementa nosso raciocínio ao dizer que “não existe, dessa forma, perfeição que não admita melhoria contínua. Não se trata de uma condição estática e sim dinâmica, uma teleiōsis e não uma perfectus.”[10]
O que Oden chama de “perfeição” é o que estamos tratando aqui como santificação. Wesley usou com muita freqüência o termo “perfeição” e acabou atraindo certas discordâncias. Isso ocorreu em função da ocidentalização da palavra “perfeição.” Para nós, ocidentais, perfeito é alguém que não tem nenhuma porcentagem de erro, alguém 100% correto. Deste modo, é inadmissível que nossa mente conceba a idéia de que alguém possa ser “perfeito” nesses moldes. Todavia, Deus não daria ordens não exeqüíveis para Seu povo, pois isso seria incongruente com o Deus revelado nas Escrituras (Gn 6.9; 17.1; Dt 18.13; 2 Sm 22.26; 1 Rs 8.61; 11.4; 15.3; 1 Cr 28.9; 2 Cr 15.17; Mt 5,48; 19.21; 2 Co 13.11; Cl 4.12; 2 Tm 3.17; Hb 6.1; Tg 1.4; Ap 3.2).
A perfeição requerida na Bíblia, portanto, não tem nada a ver com perfeição divina (que é absoluta), ou com perfeição angelical, adâmica (no sentido antes da Queda), ou de conhecimento.[11] Wesley nunca ensinou uma perfeição absoluta. Oden observou, no texto citado acima, que perfeição deve ser visto pelo conceito bíblico derivado da palavra grega teleiōsis e não de sua versão latinizada perfectus. Ao contrário do significado desta, teleiōsis significa maturidade ou completude. Deste modo, nem as expressões “perfeição cristã” e “inteira santificação” estariam em desacordo com as Escrituras, visto que o objetivo de Deus é que cheguemos ao pleno conhecimento da verdade (1 Tm 2.4), que cheguemos à estatura do varão perfeito (Ef 4.13) e até mesmo que nosso corpo, alma e espírito estejam conservados de modo irrepreensível para a vinda de Cristo (1 Ts 5.23).
Noble também entra nesse campo exegético e explica que as palavras gregas teleios (perfeito) e teleiōsis (perfeição) vêm ambas da raiz telos, que significa “finalidade” e é dela que vem a nossa palavra portuguesa teleologia.[12] Já ficou claro, pelas páginas anteriores, que Wesley tinha uma visão teleológica da santidade e que enfatizava o somos salvo para as boas obras. É o que Chiles também explica ao dizer que “a bondade humana era o objetivo de Wesley, não seu ponto de partida.”[13] Por isso Wesley dizia: “Eu acredito que Deus implanta a justiça a cada um quem Ele a tem imputado.”[14]
A santificação faz parte, portanto, do propósito final (finalidade) de Deus para com a humanidade: a restauração da imago Dei. Essa restauração se inicia com a regeneração e finalizará com a glorificação. Aqui está o significado de perfeição cristã. Tem tudo a ver com o exemplo que o Dr. Noble dá: “o jogador de golfe não apenas faz uma jogada perfeita, uma vez que a bola cai no buraco; mesmo enquanto a bola navega maravilhosamente pelo ar, ela é uma jogada ‘perfeita.’ Na verdade, apenas porque ela é uma jogada ‘perfeita,’ do momento em que ele bate na bola, é que ela pousa no buraco em única jogada.”[15]



Texto disponível em: COUTO, Vinicius. Em favor do Arminianismo-Wesleyano: um estudo bíblico, teológico e exegético de sua relevância na contemporaneidade. São Paulo: Reflexão, 2016, pp. 188-194.
[1] WILEY, Orton. Introdução à teologia cristã. Campinas: CNP, 2009, p. 309.
[2] HSTING, James. Encyclopedia of Religion and Ethic. New York: Charles Scribner’s Sons, 1928, p. 181.
[3] JENNEY, Timothy. O Espírito Santo e a Santificação. In: HORTON, Stanley (Org.). Teologia Sistemática: uma perspectiva Pentecostal. Rio de Janeiro: CPAD, 1996, p. 407.
[4] ODEN, Thomas. John Wesley’s Scriptural Cristianity: a plain exposition of his teaching on Christian doctrine. Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1994, p. 247.
[5] GREATHOUSE, William. Wholeness in Christ: toward a biblical theology of holiness. Kansas city: Beacon Hill, 1998, p 129.
[6] WESLEY, John. Sermões de John WesleyO Caminho Bíblico da Salvação. São Paulo: Editeo, 2006. 
[7] NOBLE, Thomas. Trindade Santa, Povo Santo: a teologia da perfeição cristã. Maceió: Sal Cultural, 2015, p. 85.
[8] Ibid, p. 88.
[9] REASONER, Vic. As Doutrinas de João Wesley sobre a Teologia da Graça. In: PINNOCK, Clarck; WAGNER, John (Orgs.). Graça Para Todos: a dinâmica arminiana da salvação. São Paulo: Reflexão, 2016, p. 310.
[10] ODEN, Thomas. Op. Cit., 314.
[11] WILEY, Orton. Op. Cit., p. 337.
[12] NOBLE, Thomas. Op. Cit., p. 34.
[13] CHILLES, Robert. Theological Transition in American Metodism: 1790-1935. New York: Abingdon Press, 1965, p. 143.
[14] WESLEY, John. Op. Cit., O Senhor Nossa Retidão.
[15] NOBLE, Thomas. Op. Cit., p. 35

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Sobre a obra Prevenient Grace de W. Brian Shelton



por Ben Witherington, out 2015 



É fato curioso, mas, mesmo assim, não deixa de ser um fato (como corretamente Thomas Schreiner se queixou), que os arminianos não fizeram um trabalho exaustivo para articular o que o conceito de graça preveniente significa, e por que é importante. Felizmente, para remediar a deficiência, agora há uma obra de Brian Shelton (Prevenient Grace: God’s provision for fallen humanity [Graça Preveniente: a provisão de Deus para a humanidade caída]), da qual ele gentilmente me enviou um exemplar. O livro tem 283 páginas e cobre o tema “de popa a proa”, incluindo discussões de teologia bíblica, histórica e sistemática. Shelton mostra que a ideia faz sentido e, de fato, é vital para uma adequada teologia da queda do homem e da graça de Deus. Minha preocupação, como já a expressei em The Problem with Evangelical Theology [O Problema com a Teologia Evangélica, 2ª ed.], é que as bases exegéticas para esse conceito parecem ser frágeis, e ninguém deveria construir enormes edifícios teológicos, não importa quão esplêndidos ou consistentes, sobre alicerces frágeis. Este post focará naquilo que Brian diz acerca da evidência exegética para o conceito, ao qual dedica 44 páginas do livro (na realidade, as primeiras dez páginas do capítulo tratam principalmente da depravação humana e do pecado original, não da graça preveniente).
A primeira dificuldade que tenho com a matéria é a colocação da discussão sob o termo graça. Essa direção teológica não é surpresa, uma vez que toda a teologia da Reforma se concentrou fortemente na salvação pela graça por meio da fé, e, mesmo antes disso, Aquino e Agostinho muito disseram a respeito da graça, incluindo uma espécie de graça que não é “graça salvadora”. No esquema wesleyano, diferentes formatos de graça estão relacionados aos vários estágios do processo de salvação: graça preveniente, que atrai a pessoa a Cristo; graça salvadora, que vem com a justificação e, às vezes, chamada de graça justificadora; graça santificadora, sendo aquela que opera na vida dos que já são cristãos; e, por fim, graça aperfeiçoadora ou glorificadora, que leva o processo de salvação à sua conclusão apropriada. Isso, naturalmente, visa a deixar claro que a salvação é pela graça do começo ao fim, qualquer que seja o papel secundário que a pessoa que está sendo salva possa desempenhar no processo. Embora, certamente, haja considerável debate sobre a graça no Novo Testamento, o fato é que a expressão “graça preveniente” não aparece no NT, assim como a expressão nominal “o batismo do Espírito Santo”. A questão, então, vem a ser: a ideia ou conceito está presente no Novo Testamento?
Penso que parte do problema é que a discussão ficou muito restrita ao âmbito dos debates sobre a graça. Tome, por exemplo, o Evangelho de João, que é tão importante para a defesa que Shelton faz a favor da graça preveniente. A própria palavra graça (charis) realmente ocorre apenas em uma ocasião em todo o Evangelho, no primeiro capítulo (“a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo”). Em contrapartida, o Espírito Santo e Cristo aparecem em um grande número de passagens. Então, eu diria, inicialmente, que seria bem melhor falar da obra preveniente do Espírito sobre o não crente, e no mundo, do que falar sobre graça preveniente. Essa é uma abordagem muito mais exegeticamente defensável sob vários aspectos.
O segundo aspecto do problema, de novo falando teologicamente, é que há passagens muito claras no Novo Testamento, por exemplo Romanos 7:14-25, que evidenciam que, no mínimo, uma enorme parte da humanidade está na escravidão do pecado, e dela não consegue livrar-se. Tais pessoas podem, às vezes, desejar agir de outro modo, e o texto mesmo diz que querem fazê-lo de forma diferente, mas quando tratam de fazer, estão presas à pratica de algo pecaminoso. A passagem inteira não se harmoniza confortavelmente com a noção de graça preveniente universal, se por essa noção pretende-se dizer que o pecador tem livre arbítrio libertário por ocasião do pecado. Se, por outro lado, o que se entende pelo conceito é simplesmente a mera habilidade que permite responder positivamente ao Evangelho, quando é ouvido, essa é outra questão, que o próprio Wesley enfrentou em antigo sermão sobre o homem natural vs. o homem evangélico etc., concluindo finalmente em sermões posteriores que não há tal coisa como um homem puramente natural, totalmente desprovido da graça preveniente (exceto talvez se a pessoa se afaste dessa graça?). Precisamos agora tratar exegeticamente do cerne da questão.
Primeiramente, não penso que Romanos 1:18-32 realmente nos ajude muito nesse exame. Não se trata de uma abordagem sobre a graça, ou da graça que vem a todos os homens como resultado da intervenção divina de Cristo. Ao contrário, o texto trata da revelação geral da realidade de Deus e de seu poder a toda a humanidade por intermédio da criação divina. Se essa passagem quer dizer alguma coisa, diz respeito à noção de que todos os seres humanos, criados à imagem de Deus, ficam inescusáveis, quando se trata de saber que Deus é, e é Todo-Poderoso, pois tem se revelado a todos na e através da criação e de suas criaturas. “Os céus contam a glória de Deus...” e assim por diante. Trata-se da teologia da criação, não da teologia da redenção, e, desse modo, não surpreendentemente está em causa Deus, o Pai, e sua ira contra toda iniquidade, e não Jesus, o Filho, e sua graça. Esta última abordagem vem adiante em Romanos. O capítulo 2 é um pouco mais útil, porque fala acerca da tolerância, bondade e paciência de Deus com os pecadores gentios e judeus, mas o que se afirma ali tem a ver com o caráter de Deus, e não com alguma dispensação universal da graça que rompe a escravidão do pecado.
Muito mais relevante é a análise feita por Shelton do Evangelho de João (pp. 24 e segs.), e especialmente João 1:9, que considero estar se referindo a Cristo, que é a luz que vem ao mundo por meio da encarnação conforme tratada nessa passagem, e nos é dito que ele ilumina a todos, a toda a humanidade em sua vinda. Se simplesmente nos ativermos ao contexto imediato, no mínimo isso significa que Cristo revela a todos sua condição espiritual de trevas e, consequentemente, a necessidade de arrependimento e salvação. Essa passagem não é meramente sobre a teologia da criação e da revelação geral de Deus na criação, mas sobre a aurora da redenção, porque Deus ama o mundo inteiro e deseja que ninguém pereça. Agora estamos chegando a algum lugar.
Igualmente conveniente é a desconstrução que o autor faz da habitual interpretação calvinista de João 6:44. Como Shelton corretamente frisa, esse texto sobre a atração das pessoas por Deus com certeza tem de ser relacionado com João 12:32, onde se diz que, quando Cristo fosse levantado na cruz, ele atrairia (o mesmo verbo grego) todos os seres humanos para si. Atrair, então, pode não ter nada a ver com a noção calvinista de eleição ou chamada eficaz dos poucos predestinados. E João 12:32, como Shelton também deixa claro, não pode ser defraudado com o frágil argumento de que estava meramente sugerindo que Cristo atrairia todas as classes ou tipos de pessoas para si mesmo. Não. O texto não diz isso, e muito do restante desse Evangelho não comporta tal leitura de João 12:32. Há um aspecto que Shelton não pontuou que vale a pena salientar: o termo “mundo” (kosmos em grego) nesse Evangelho se refere a todo o mundo da humanidade caída, a quem Cristo veio salvar. Dessa forma, quando lemos em João 3:16-17 que Deus ama o mundo, não há como isso ser manipulado para o pensamento de que Deus tem amor pactual pelos eleitos.
E é neste ponto que eu digo que, embora João 1:9 mostre claramente que Cristo é aquele que ilumina nossa condição espiritual, é o Espírito Santo quem, de acordo com o Quarto Evangelho, evidencia a condenação, convence e converte a pessoa (note-se que o Espírito evidencia ao mundo a condenação pelo pecado – João 16:8-11). O Espírito é também aquele que, após a conversão, guia o discípulo a toda a verdade. Assim, parece-me que é preferível falar da obra preveniente do Espírito no descrente a tratar de graça preveniente. Por fim, o que, então, deveríamos fazer de Romanos 7:13-25?
Primeiramente, como discorro extensamente em meu comentário à Carta aos Romanos, as pessoas a que essa passagem se refere são todas aquelas que estão “em Adão” e alheias a Cristo. Em Cristo há, verdadeiramente, libertação da escravidão do pecado (veja Romanos 8:1-4). Paulo está apresentando uma visão cristã da condição pré-cristã, a qual efetivamente envolve a escravidão do pecado. Mas é essa mesma passagem que nos conta que esse “Eu” em questão tem uma consciência, deseja fazer melhor, mas não consegue, e poderíamos mesmo dizer que está sob a convicção de pecado.  Essa é uma razão pela qual uma das sugestões de Wesley em alusão a Romanos 7:14-25 é a de que o texto descreve alguém à beira da conversão e sob a convicção de pecado. Penso que a sugestão provavelmente esteja correta.
Discordo da noção de que o ser humano perdeu a imagem divina e a capacidade de consciência na Queda. Se fosse assim, o próprio Adão não teria experimentado vergonha por seu pecado. Sem consciência, não há vergonha. O que Paulo está sugerindo é que o Espírito restaura a simples habilidade para corresponder à convicção operada pelo próprio Espírito e clamar voluntariamente e sem predeterminação: “quem me livrará deste corpo de pecado?”. É esse o clamor do coração - o clamor para ser livre da escravidão do pecado - que o Deus gracioso capacita qualquer pessoa a proferir oportunamente na vida, e, desse modo, responder positivamente ao pregador que então diz: “graças a Deus por Jesus Cristo, pois agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus”.
Em outras palavras, prefiro falar da obra contínua da Trindade, que possibilita que a pessoa responda ao chamado para arrependimento e fé em Jesus Cristo, a falar de graça preveniente, embora, certamente, aquilo de que estou falando envolva o favor imerecido de Deus, seu dom gratuito. Nem mesmo se pode pedir a Deus ajuda, sem que Ele já tenha trabalhado na vida do pecador. Não necessitamos de uma doutrina de predeterminação, ou chamado eficaz do eleito, para lidarmos adequadamente com o que dizem o Quarto Evangelho e a Carta de Paulo aos Romanos sobre essas coisas. E, finalmente, caso mais uma vez você esteja se perguntando a respeito de Romanos 8:28 e segs., ali Paulo está confortando aqueles que amam a Deus e são chamados segundo a escolha ou propósito (não diz “sua” escolha ou propósito [no original]) a que, de fato, foram destinados previamente, para serem conformes à imagem do Filho de Deus. Trata-se do destino daqueles que estão em Cristo, não da determinação prévia de quem será admitido a estar em Cristo. A história de Cristo é o nosso destino, em que somos completamente moldados à sua imagem por meio da ressurreição no Último Dia.
Pense nessas coisas.

Tradução: Wesiley Monteiro