segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Sobre a obra Prevenient Grace de W. Brian Shelton



por Ben Witherington, out 2015 



É fato curioso, mas, mesmo assim, não deixa de ser um fato (como corretamente Thomas Schreiner se queixou), que os arminianos não fizeram um trabalho exaustivo para articular o que o conceito de graça preveniente significa, e por que é importante. Felizmente, para remediar a deficiência, agora há uma obra de Brian Shelton (Prevenient Grace: God’s provision for fallen humanity [Graça Preveniente: a provisão de Deus para a humanidade caída]), da qual ele gentilmente me enviou um exemplar. O livro tem 283 páginas e cobre o tema “de popa a proa”, incluindo discussões de teologia bíblica, histórica e sistemática. Shelton mostra que a ideia faz sentido e, de fato, é vital para uma adequada teologia da queda do homem e da graça de Deus. Minha preocupação, como já a expressei em The Problem with Evangelical Theology [O Problema com a Teologia Evangélica, 2ª ed.], é que as bases exegéticas para esse conceito parecem ser frágeis, e ninguém deveria construir enormes edifícios teológicos, não importa quão esplêndidos ou consistentes, sobre alicerces frágeis. Este post focará naquilo que Brian diz acerca da evidência exegética para o conceito, ao qual dedica 44 páginas do livro (na realidade, as primeiras dez páginas do capítulo tratam principalmente da depravação humana e do pecado original, não da graça preveniente).
A primeira dificuldade que tenho com a matéria é a colocação da discussão sob o termo graça. Essa direção teológica não é surpresa, uma vez que toda a teologia da Reforma se concentrou fortemente na salvação pela graça por meio da fé, e, mesmo antes disso, Aquino e Agostinho muito disseram a respeito da graça, incluindo uma espécie de graça que não é “graça salvadora”. No esquema wesleyano, diferentes formatos de graça estão relacionados aos vários estágios do processo de salvação: graça preveniente, que atrai a pessoa a Cristo; graça salvadora, que vem com a justificação e, às vezes, chamada de graça justificadora; graça santificadora, sendo aquela que opera na vida dos que já são cristãos; e, por fim, graça aperfeiçoadora ou glorificadora, que leva o processo de salvação à sua conclusão apropriada. Isso, naturalmente, visa a deixar claro que a salvação é pela graça do começo ao fim, qualquer que seja o papel secundário que a pessoa que está sendo salva possa desempenhar no processo. Embora, certamente, haja considerável debate sobre a graça no Novo Testamento, o fato é que a expressão “graça preveniente” não aparece no NT, assim como a expressão nominal “o batismo do Espírito Santo”. A questão, então, vem a ser: a ideia ou conceito está presente no Novo Testamento?
Penso que parte do problema é que a discussão ficou muito restrita ao âmbito dos debates sobre a graça. Tome, por exemplo, o Evangelho de João, que é tão importante para a defesa que Shelton faz a favor da graça preveniente. A própria palavra graça (charis) realmente ocorre apenas em uma ocasião em todo o Evangelho, no primeiro capítulo (“a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo”). Em contrapartida, o Espírito Santo e Cristo aparecem em um grande número de passagens. Então, eu diria, inicialmente, que seria bem melhor falar da obra preveniente do Espírito sobre o não crente, e no mundo, do que falar sobre graça preveniente. Essa é uma abordagem muito mais exegeticamente defensável sob vários aspectos.
O segundo aspecto do problema, de novo falando teologicamente, é que há passagens muito claras no Novo Testamento, por exemplo Romanos 7:14-25, que evidenciam que, no mínimo, uma enorme parte da humanidade está na escravidão do pecado, e dela não consegue livrar-se. Tais pessoas podem, às vezes, desejar agir de outro modo, e o texto mesmo diz que querem fazê-lo de forma diferente, mas quando tratam de fazer, estão presas à pratica de algo pecaminoso. A passagem inteira não se harmoniza confortavelmente com a noção de graça preveniente universal, se por essa noção pretende-se dizer que o pecador tem livre arbítrio libertário por ocasião do pecado. Se, por outro lado, o que se entende pelo conceito é simplesmente a mera habilidade que permite responder positivamente ao Evangelho, quando é ouvido, essa é outra questão, que o próprio Wesley enfrentou em antigo sermão sobre o homem natural vs. o homem evangélico etc., concluindo finalmente em sermões posteriores que não há tal coisa como um homem puramente natural, totalmente desprovido da graça preveniente (exceto talvez se a pessoa se afaste dessa graça?). Precisamos agora tratar exegeticamente do cerne da questão.
Primeiramente, não penso que Romanos 1:18-32 realmente nos ajude muito nesse exame. Não se trata de uma abordagem sobre a graça, ou da graça que vem a todos os homens como resultado da intervenção divina de Cristo. Ao contrário, o texto trata da revelação geral da realidade de Deus e de seu poder a toda a humanidade por intermédio da criação divina. Se essa passagem quer dizer alguma coisa, diz respeito à noção de que todos os seres humanos, criados à imagem de Deus, ficam inescusáveis, quando se trata de saber que Deus é, e é Todo-Poderoso, pois tem se revelado a todos na e através da criação e de suas criaturas. “Os céus contam a glória de Deus...” e assim por diante. Trata-se da teologia da criação, não da teologia da redenção, e, desse modo, não surpreendentemente está em causa Deus, o Pai, e sua ira contra toda iniquidade, e não Jesus, o Filho, e sua graça. Esta última abordagem vem adiante em Romanos. O capítulo 2 é um pouco mais útil, porque fala acerca da tolerância, bondade e paciência de Deus com os pecadores gentios e judeus, mas o que se afirma ali tem a ver com o caráter de Deus, e não com alguma dispensação universal da graça que rompe a escravidão do pecado.
Muito mais relevante é a análise feita por Shelton do Evangelho de João (pp. 24 e segs.), e especialmente João 1:9, que considero estar se referindo a Cristo, que é a luz que vem ao mundo por meio da encarnação conforme tratada nessa passagem, e nos é dito que ele ilumina a todos, a toda a humanidade em sua vinda. Se simplesmente nos ativermos ao contexto imediato, no mínimo isso significa que Cristo revela a todos sua condição espiritual de trevas e, consequentemente, a necessidade de arrependimento e salvação. Essa passagem não é meramente sobre a teologia da criação e da revelação geral de Deus na criação, mas sobre a aurora da redenção, porque Deus ama o mundo inteiro e deseja que ninguém pereça. Agora estamos chegando a algum lugar.
Igualmente conveniente é a desconstrução que o autor faz da habitual interpretação calvinista de João 6:44. Como Shelton corretamente frisa, esse texto sobre a atração das pessoas por Deus com certeza tem de ser relacionado com João 12:32, onde se diz que, quando Cristo fosse levantado na cruz, ele atrairia (o mesmo verbo grego) todos os seres humanos para si. Atrair, então, pode não ter nada a ver com a noção calvinista de eleição ou chamada eficaz dos poucos predestinados. E João 12:32, como Shelton também deixa claro, não pode ser defraudado com o frágil argumento de que estava meramente sugerindo que Cristo atrairia todas as classes ou tipos de pessoas para si mesmo. Não. O texto não diz isso, e muito do restante desse Evangelho não comporta tal leitura de João 12:32. Há um aspecto que Shelton não pontuou que vale a pena salientar: o termo “mundo” (kosmos em grego) nesse Evangelho se refere a todo o mundo da humanidade caída, a quem Cristo veio salvar. Dessa forma, quando lemos em João 3:16-17 que Deus ama o mundo, não há como isso ser manipulado para o pensamento de que Deus tem amor pactual pelos eleitos.
E é neste ponto que eu digo que, embora João 1:9 mostre claramente que Cristo é aquele que ilumina nossa condição espiritual, é o Espírito Santo quem, de acordo com o Quarto Evangelho, evidencia a condenação, convence e converte a pessoa (note-se que o Espírito evidencia ao mundo a condenação pelo pecado – João 16:8-11). O Espírito é também aquele que, após a conversão, guia o discípulo a toda a verdade. Assim, parece-me que é preferível falar da obra preveniente do Espírito no descrente a tratar de graça preveniente. Por fim, o que, então, deveríamos fazer de Romanos 7:13-25?
Primeiramente, como discorro extensamente em meu comentário à Carta aos Romanos, as pessoas a que essa passagem se refere são todas aquelas que estão “em Adão” e alheias a Cristo. Em Cristo há, verdadeiramente, libertação da escravidão do pecado (veja Romanos 8:1-4). Paulo está apresentando uma visão cristã da condição pré-cristã, a qual efetivamente envolve a escravidão do pecado. Mas é essa mesma passagem que nos conta que esse “Eu” em questão tem uma consciência, deseja fazer melhor, mas não consegue, e poderíamos mesmo dizer que está sob a convicção de pecado.  Essa é uma razão pela qual uma das sugestões de Wesley em alusão a Romanos 7:14-25 é a de que o texto descreve alguém à beira da conversão e sob a convicção de pecado. Penso que a sugestão provavelmente esteja correta.
Discordo da noção de que o ser humano perdeu a imagem divina e a capacidade de consciência na Queda. Se fosse assim, o próprio Adão não teria experimentado vergonha por seu pecado. Sem consciência, não há vergonha. O que Paulo está sugerindo é que o Espírito restaura a simples habilidade para corresponder à convicção operada pelo próprio Espírito e clamar voluntariamente e sem predeterminação: “quem me livrará deste corpo de pecado?”. É esse o clamor do coração - o clamor para ser livre da escravidão do pecado - que o Deus gracioso capacita qualquer pessoa a proferir oportunamente na vida, e, desse modo, responder positivamente ao pregador que então diz: “graças a Deus por Jesus Cristo, pois agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus”.
Em outras palavras, prefiro falar da obra contínua da Trindade, que possibilita que a pessoa responda ao chamado para arrependimento e fé em Jesus Cristo, a falar de graça preveniente, embora, certamente, aquilo de que estou falando envolva o favor imerecido de Deus, seu dom gratuito. Nem mesmo se pode pedir a Deus ajuda, sem que Ele já tenha trabalhado na vida do pecador. Não necessitamos de uma doutrina de predeterminação, ou chamado eficaz do eleito, para lidarmos adequadamente com o que dizem o Quarto Evangelho e a Carta de Paulo aos Romanos sobre essas coisas. E, finalmente, caso mais uma vez você esteja se perguntando a respeito de Romanos 8:28 e segs., ali Paulo está confortando aqueles que amam a Deus e são chamados segundo a escolha ou propósito (não diz “sua” escolha ou propósito [no original]) a que, de fato, foram destinados previamente, para serem conformes à imagem do Filho de Deus. Trata-se do destino daqueles que estão em Cristo, não da determinação prévia de quem será admitido a estar em Cristo. A história de Cristo é o nosso destino, em que somos completamente moldados à sua imagem por meio da ressurreição no Último Dia.
Pense nessas coisas.

Tradução: Wesiley Monteiro