A doutrina da perfeição cristã passou (e ainda passa) por
muito preconceito em função da má compreensão de sua etimologia. Normalmente,
as pessoas a desprezam imediatamente por considerarem que é impossível ser “perfeito”
nesta vida. Antes de explicar a questão etimológica, vale a pena também citar
que esta mesma doutrina possui outras nomenclaturas, tais como “inteira
santificação” “perfeito amor,” “pureza de coração,” “batismo com, ou enchimento
do Espírito Santo,” “plenitude da bênção,” e “santidade cristã.” Contudo, é
possível ser perfeito nesta vida? Sei que a pronta resposta é,
majoritariamente, que não. Mas, analisaremos nas linhas abaixo algumas questões
importantes sobre o tema.
Em primeiro lugar, vale a pena avaliar algumas passagens
bíblicas que envolvem o tema “perfeição.” No sermão do monte, Jesus fez a
seguinte exortação: “Sede vós, pois, perfeitos (gr. teleios), como é perfeito o vosso Pai celestial” (Mt 5.48). Seria
estranho, talvez uma hipocrisia, Jesus cobrar algo de seus seguidores que fosse
inatingível nesta vida. Soaria muito estranho. É como se Ele dissesse “seja”
mas é “impossível ser.” Em outra ocasião, mais especificamente na oração
sacerdotal, Jesus disse: “E eu lhes dei a glória que a mim me deste, para que
sejam um, como nós somos um; eu neles, e tu em mim, para que eles sejam
perfeitos (teteleiōmenoi) em
unidade...” (Jo 17.22,23).
O Apóstolo Paulo também fez uso do assunto “perfeição” em
suas epístolas. Aos filipenses, por exemplo, ele declarou que a perfeição é
algo exeqüível nesta vida e afirma a existência de pessoas perfeitas, dentre as
quais ele estava incluso: “Pelo que todos quantos somos perfeitos (teleioi) tenhamos este sentimento; e, se
sentis alguma coisa de modo diverso, Deus também vo-lo revelará” (Fp 3.15). Em
outra ocasião, Paulo explica que Cristo deve ser anunciado. Contudo, a mensagem
da cruz não consiste apenas no novo nascimento, mas também numa vida frutífera
e transformada, de perfeição cristã. Por isso, Paulo alega que é necessário falar
de Cristo, “o qual nós anunciamos, admoestando a todo homem, e ensinando a todo
homem em toda a sabedoria, para que apresentemos todo homem perfeito (teleion) em Cristo” (Cl 1.28).
Essa perfeição, entretanto, pode ser perdida caso alguém
se apostate de Cristo. Por isso Paulo aborda que Epafras orava pela
perseverança dos irmãos: “Saúda-vos Epafras, que é um de vós, servo de Cristo
Jesus, e que sempre luta por vós nas suas orações, para que permaneçais
perfeitos (teleioi) e plenamente
seguros em toda a vontade de Deus” (Cl 4.12). “Perfeição cristã” não é um
assunto exclusivo de Jesus ou de Paulo. Tiago também sabe a importância e
mostra que as adversidades da vida são pedagógicas, isto é, elas nos
aperfeiçoam moldando-nos, a fim de que nosso caráter seja cada vez mais
parecido com o de nosso Mestre e Salvador Jesus Cristo: “...sabendo que a
aprovação da vossa fé produz a perseverança, e a perseverança tenha a sua obra
perfeita (teleion), para que sejais
perfeitos (teleioi) e completos, não
faltando em coisa alguma” (Tg 1.3,4).
Como se pôde perceber, as palavras gregas dos textos bíblicos
supracitados são teleioi, teleion,
teleios e teteleiōmenoi. Todas
essas palavras vêm de teleios, cujos
significados, de acordo com o lexicografista Strong, podem ser: perfeito, completo
em todas as suas partes, plenamente desenvolvido, algo relacionado especialmente
à completude da integridade do caráter cristão, ou maturidade. Ser perfeito,
portanto, não quer dizer exatamente impecável, como vem de imediato em nossas
mentes. Essa confusão ocorre, entretanto, em função da diferença etimológica.
Pensamos em “perfeito” a partir de sua definição latinizada, oriunda de perfectus, cujo significado é o de 100%
em alguma coisa. Obviamente que é impossível ser 100% impecável nesta vida.
Contudo, a “perfeição” bíblica traz outros significados, dentre os quais vale
destacar, em primeira mão, a ideia de maturidade.[1]
O autor da carta aos hebreus, por exemplo, exorta seus
leitores a crescerem na fé. Era vergonhoso que naquela comunidade as pessoas
ainda estavam precisando estudar os princípios basilares da fé cristã. Ele
deveriam estar estudando e até mesmo ensinando questões mais profundas sobre
Cristo e a salvação disponibilizada por Ele. Por isso, o autor da epístola
disse: “Ora, qualquer que se alimenta de leite é inexperiente na palavra da
justiça, pois é criança; mas o alimento sólido é para os adultos (teleion),
os quais têm, pela prática, as faculdades exercitadas para discernir tanto o
bem como o mal” (Hb 5.13,14). O alimento sólido é para os cristãos mais maduros,
mas, os crentes hebreus estavam agindo, ainda, como neófitos. Deveriam ensinar,
mas tinham de aprender.
Paulo reconhece, ainda, que essa “perfeição” (maturidade)
não é estática, isto é, não é algo paralisador. O cristão deve sempre buscar
crescer na graça de Deus e amadurecer cada vez mais no relacionamento com Deus,
consigo mesmo, com o próximo e com a natureza. Para isso foi que o Senhor
instituiu ministros em sua igreja, os Apóstolos (plantadores de igrejas),
Profetas (pregadores), Evangelistas, Pastores e Mestres. Esses ministros têm a
incumbência de ensinar e incentivarem o povo de Deus a amadurecerem na
caminhada cristã, “até que todos cheguemos à unidade da fé e ao conhecimento do
Filho de Deus, a varão perfeito, à medida da estatura completa (teleios)
de Cristo” (Ef 4.13 – ARC). A Nova Tradução da Linguagem de Hoje traduziu o
mesmo verso da seguinte maneira: “Desse modo todos nós chegaremos a ser um na
nossa fé e no nosso conhecimento do Filho de Deus. E assim seremos pessoas
maduras (teleios) e alcançaremos a altura espiritual de Cristo” (Ef 4.13
– NTLH).
Desta forma, a “perfeição cristã” possui estágios
cronológicos na vida do crente. Ela tem início, meio e fim. O início se dá com
a regeneração; o meio ocorre com a santificação; e o fim ocorrerá com a nossa
glorificação. Sendo assim, A perfeição requerida na
Bíblia, portanto, não tem nada a ver com perfeição divina (que é absoluta), ou
com perfeição angelical, adâmica (no sentido antes da Queda), ou de
conhecimento.[2] Além do
significado ligado a maturidade, as palavras gregas teleioi, teleion, teleios e teteleiōmenoi
derivam do radical telos, que significa
“finalidade” e é dela que vem a nossa palavra portuguesa teleologia, conforme
aponta o teólogo nazareno Thomas Noble.[3]
A “perfeição cristã” bíblica possui,
portanto, três aspectos inerentes: um início (ocorrido na regeneração), um
processo de maturidade (desenvolvido na santificação) e uma finalidade (alvo e
propósito, que podem tanto ocorrer nesta vida como culminará na glorificação).
Um exemplo disso pode ser visto na obra supracitada do Dr.
Noble: “o jogador de golfe não apenas faz uma jogada perfeita, uma vez que a
bola cai no buraco; mesmo enquanto a bola navega maravilhosamente pelo ar, ela
é uma jogada ‘perfeita.’ Na verdade, apenas porque ela é uma jogada ‘perfeita,’
do momento em que ele bate na bola, é que ela pousa no buraco em única jogada.”[4]
O que faz essa jogada ser “perfeita”? O fato de ela atingir o alvo numa única
tacada e consolidar um hole in one?[5]
Absolutamente, não! O taco escolhido, as condições climáticas (sol, velocidade
do ar, etc), a força deslocada à bola e o movimento parabólico da mesma somam a
perfeição da jogada!
Além desse quesito gradual (perfeição não
estática), a perfeição cristã também tem a ver com a finalidade. Uma caneta foi
criada com a finalidade de escrever. Não importa se usamos uma BIC que custa R$
2,00 ou se usamos uma Montblanc de R$ 10.000. Não importa também se a caneta
está mordida ou se está com o tubo quebrado, contato que escreva. Desta forma,
se esta caneta escreve, ela é perfeita, pois está cumprindo com sua finalidade.
A questão é que Deus tem finalidades terrenas para os cristãos. Somos chamados
para ser “...testemunhas” (At 1.8), para sermos “...conformes à imagem de seu
Filho...” (Rm 8.29), para sermos “santos e irrepreensíveis” (Ef 1.4), fomos
encarregados de levar a “... palavra da reconciliação” (2 Co 5.19) e até mesmo
criados em Cristo Jesus “...para as boas obras..” (Ef 2.10). Enquanto não somos
glorificados devemos ser perfeitos anunciando o Evangelho, buscando a santidade
de vida e até mesmo nos engajando com as boas obras, a fim de que os ímpios as
vejam e glorifiquem ao nosso Pai celestial (Mt 5.16).
Voltando à pergunta inicial deste breve
ensaio: “é possível ser perfeito nesta vida”? A resposta bíblica é que sim, é
possível! Podemos sair da estaticidade e buscar maior interação com o Deus
vivo, a fim de que cresçamos em sua graça e no conhecimento de Sua Palavra.
Esse crescimento é sempre contínuo nesta vida e não tem nada a ver com
impecabilidade. É um crescimento cujo mérito está na graça de Deus e jamais no
esforço humano. É um crescimento que aperfeiçoa nossa vida, beneficia nossos
relacionamentos e que, no final das contas, glorifica ao Deus Todo Poderoso.
Que possamos ser perfeitos, assim como é perfeito o nosso Pai Celestial!
Soli Deo Gloria
Notas
[1] ODEN, Thomas. John Wesley’s Scriptural Cristianity: a
plain exposition of his teaching on Christian doctrine. Grand Rapids:
Zondervan Publishing House, 1994, p. 314.
[2] WILEY, Orton. Introdução à
teologia cristã. Campinas:
CNP, 2009, p. 337.
[3] NOBLE, Thomas. Trindade Santa, Povo Santo: a
teologia da perfeição cristã. Maceió: Sal Cultural, 2015, p. 34.
[4] Ibid, p. 35