terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Graça santificadora

O tema “santidade” é um dos mais importantes dentro da tradição wesleyana. Wiley cita a visão apaixonante do Bispo Foster acerca do assunto em questão: “A santidade pulsa na profecia, ressoa na lei, murmura nas narrações, irradia na poesia, vibra nos salmos, fala nos símbolos, resplandece nas imagens, articula-se na linguagem, e arde no espírito de todo o sistema, desde o alfa até o ômega, desde o princípio até o fim. Santidade! Santidade oferecida! Santidade necessitada!”[1]
James Hsting, ministro presbiteriano que faleceu em 1922, dizia que santificação é “a obra do Espírito Santo de Deus que livra os homens da culpa e do poder do pecado; que os consagra para servir e amar a Deus e que compartilha, inicial e progressivamente, os frutos da redenção de Cristo e as virtudes da vida santa.”[2] O Catecismo de Westminster, que segue a mesma confissão soteriológica de Hsting, diz: “... É a obra da gratuita graça de Deus, pela qual somos renovados em todo nosso ser à imagem de Deus, e capacitados mais e mais para morrer para o pecado e viver para a justiça.”
Para Timothy Jenney, teólogo pentecostal, a santificação “é o processo mediante o qual Deus está puri­ficando o mundo e os seus habitantes. Seu alvo derradeiro é que tudo, tanto as coisas animadas quanto as inanimadas, seja purificado de qualquer mancha de pecado ou de impure­za.” Ele prossegue, explicando que, “Com essa finalidade, Ele tem proporcionado os meios de salvação mediante Jesus Cristo. E, no fim dos tempos, Ele pretende consignar ao fogo tudo quanto não pode ou não quer ser purificado (Ap 20.11 - 21.1; ver também 2 Pe 3.10-13), e assim tirar da Terra tudo o que é pecaminoso.”[3]
Para começarmos, é importante destacar que Wesley fazia distinção entre a justificação e a santificação da seguinte maneira: “Pela justificação somos salvos da culpa do pecado e restaurados para o favor de Deus; pela santificação somos salvos do poder e da raiz do pecado e restaurados à imagem de Deus.”[4] Apesar de a graça santificadora ser a que procede a justificadora nos estágios da graça, William Greathouse comenta que a santificação começa com a graça preveniente.[5] Isso se dá porque sem a capacitação do indivíduo para entender o Evangelho, bem como sem a capacitação de responder a essa oferta, não haveria santificação. A santificação, tal qual a santificação, é recebida pela fé:

Eu tenho continuamente testificado, em público ou privado, que nós somos santificados, assim como justificados, através da fé. E, de fato, uma dessas grandes verdades, ilustra grandemente a outra. Exatamente como nós somos justificados pela fé, nós somos santificados pela fé. A fé é a condição; e a única condição da santificação, exatamente como é da justificação. É a condição: ninguém, é santificado, a não ser aquele que crê; sem a fé, nenhum homem é santificado. E esta é a única condição: apenas esta é suficiente para a santificação. Todos que crêem são santificados, o que quer que tenham ou não. Em outras palavras, nenhum homem é santificado, até que ele creia: todo homem que crê é santificado.[6]

Justificação
Santificação
Obra de Cristo “por nós”
Obra efetuada “em nós”
É um ato judicial
Uma transformação espiritual
Mudança condenação p/ absolvição
Mudança pecado p/ santidade
Dá a remissão dos pecados atuais
Limpa do coração a depravação
Remove a culpa do pecado
Destrói o poder do pecado
Torna possível a adoção
Restaura a imagem de Deus
Dá o direito do céu
Torna-nos aptos para o céu
É posicional e instantânea
É posicional e processual

De fato, a necessidade de vencer o pecado e de viver em santidade é uma doutrina completamente bíblica e aparece em toda a Escritura. Mas de um modo interessante, a Igreja Primitiva é exortada a praticá-la em todas as epístolas. Os romanos são exortados a se tornarem servos da justiça para a santificação (Rm 6.19); Os coríntios são advertidos a não praticarem obras como devassidão, idolatria, adultério, homossexualismo, furtos, avareza, bebedice e maledicência, pois foram lavados, santificados e justificados em Cristo (1 Co 6.9-11). Assim sendo, eles deveriam se aperfeiçoar no processo de santificação (2 Co 7.1);
Os gálatas foram prevenidos sobre uma série de obras carnais que não deveriam praticar (Gl 5.19-21); Os efésios foram instruídos a se revestirem do novo homem que foi criado para santidade, deixando, portanto, uma série de obras pecaminosas (Ef 4.20-31); Os filipenses foram aconselhados a se tornarem irrepreensíveis, sinceros e imaculados (Fp 2.14,15); Os colossenses deveriam exterminar as inclinações carnais. E a lista não era pequena (Cl 3.5-10); Os tessalonicenses foram notificados de que deveriam cumprir a vontade de Deus: a santificação. Quem rejeitasse essa doutrina estava rejeitando o próprio Deus (1 Ts 4.1-8). A conduta deles não deveria ser desordenada, mas segundo a tradição de santidade que receberam (2 Ts 3.6,7);
Timóteo foi instruído a seguir a caminhada cristã sem mácula e irrepreensível (1 Tm 6.13,14), afastando-se da injustiça (2 Tm 2.19); Tito recebeu uma verdadeira revelação: a de que a Graça de Deus se manifestou ensinando-nos que devemos renunciar à impiedade e às paixões mundanas, a fim de esperarmos o aparecimento da glória de Deus (Tt 2.11-13). Filemom deveria esquecer-se das mágoas passadas e Paulo sabia que ele obedeceria essa direção fazendo ainda mais do que era pedido (Fm 1.21); Os hebreus deviam deixar todo pecado e resisti-lo com todas as suas forças (até o sangue), afinal, sem santidade ninguém verá o Senhor (Hb 12.1,4,14);
Tiago mostra a necessidade de suportarmos as provações e diz que somos tentados segundo nossas próprias concupiscências. Sendo assim, precisamos ser vigilantes, caso contrário, essas cobiças inerentes de nossa natureza caída podem consumar o pecado, gerando morte (Tg 1.12-15); Pedro diz que os crentes não devem se conformar com as concupiscências da vida passada, mas que devemos ser santos em todo o nosso procedimento, pois quem nos chamou é Santo (1 Pe 1.13-16). Ele diz, ainda, que alguns irmãos não haviam buscado com diligência as virtudes do Espírito, esquecendo-se da purificação dos seus antigos pecados (2 Pe 1.5-9);
João disse que todos nós pecamos. Entretanto, isso não quer dizer que o pecado é habitual, mas acidental, pois aquele que é nascido de Deus não pode continuar pecando. Se pecarmos acidentalmente, temos um Advogado Fiel e Justo que nos perdoa e purifica dos pecados e de toda injustiça (1 Jo 1.9,10; 2.1; 3.1-9); Na segunda epístola, ele diz que quem vai além do ensino de Cristo não é de Deus. Originalmente ele se referia aos gnósticos. Mas a passagem pode abranger mais situações dos nossos dias. Se alguém vai além do ensino de santidade ao Senhor, induzindo a igreja ao pecado, obviamente o tal não é de Deus (2 Jo 9). Em sua terceira carta ele diz a Gaio que não imite as obras do mal, mas as de Deus, fazendo o bem (3 Jo 11);
Judas lembra das palavras dos Apóstolos sobre os homens dos últimos tempos: escarnecedores, de ímpia concupiscência, que causam divisões, são sensuais e sem o Espírito. Mas os crentes deveriam se conservar no amor de Deus, confiando nAquele que é poderoso para guarda-los de tropeçar e para mantê-los imaculados e jubilosos (Jd 17-24); Até mesmo o Apóstolo João disse em Apocalipse que ficarão de fora os cães, os feiticeiros, os adúlteros, os homicidas, os idólatras e todo o que ama e pratica a mentira (Ap 22.15).
Conforme já deixamos bem definido, a regeneração era o princípio da santificação para Wesley. Entretanto, o wesleyanismo mais moderno, oriundo do movimento de santidade, acabou postulando que existem duas etapas de santificação, uma inicial que ocorre na primeira bênção e outra posterior, também chamada de segunda bênção. Entretanto, como já está assinalado, a santificação, para Wesley, ocorre no novo nascimento, fenômeno espiritual que ocorre simultaneamente com a justificação. É como Noble explica: “não se pode ser um cristão sem estar santificado. A santificação pode não ser completa ou ‘inteira’ neste ponto, mas ela já começou.”[7]
A respeito dessa visão de duas “bênçãos,” que foi postulada nos dias de Asa Mahan e Charles Finney, Noble ainda destaca que muitos prononentes do movimento de santidade acabaram deixando passar a errônea idéia de que o cristão que ainda não havia recebido a primeira bênção poderia pecar regular e voluntariamente até que a segunda bênção os tirasse dessa vida de destruição e os trouxesse para uma vida de vitória. Com certa indignação o Dr. Noble até faz sua reclamação de que essa visão distorcida da santificação “permanece uma crença teimosamente persistente, popularmente falando. Porém, não se trata do ensinamento de Wesley!”[8]
Em outras palavras, a regeneração é o ponto de partida, ela dá a largada para a santificação, que por sua vez possui um caráter gradual, no qual o cristão deve crescer continuamente na graça até atingir a estatura do varão perfeito. Tanto que Wesley gostava da expressão latina moi progressus ad infinitum (meu progresso é sem fim).[9] Oden complementa nosso raciocínio ao dizer que “não existe, dessa forma, perfeição que não admita melhoria contínua. Não se trata de uma condição estática e sim dinâmica, uma teleiōsis e não uma perfectus.”[10]
O que Oden chama de “perfeição” é o que estamos tratando aqui como santificação. Wesley usou com muita freqüência o termo “perfeição” e acabou atraindo certas discordâncias. Isso ocorreu em função da ocidentalização da palavra “perfeição.” Para nós, ocidentais, perfeito é alguém que não tem nenhuma porcentagem de erro, alguém 100% correto. Deste modo, é inadmissível que nossa mente conceba a idéia de que alguém possa ser “perfeito” nesses moldes. Todavia, Deus não daria ordens não exeqüíveis para Seu povo, pois isso seria incongruente com o Deus revelado nas Escrituras (Gn 6.9; 17.1; Dt 18.13; 2 Sm 22.26; 1 Rs 8.61; 11.4; 15.3; 1 Cr 28.9; 2 Cr 15.17; Mt 5,48; 19.21; 2 Co 13.11; Cl 4.12; 2 Tm 3.17; Hb 6.1; Tg 1.4; Ap 3.2).
A perfeição requerida na Bíblia, portanto, não tem nada a ver com perfeição divina (que é absoluta), ou com perfeição angelical, adâmica (no sentido antes da Queda), ou de conhecimento.[11] Wesley nunca ensinou uma perfeição absoluta. Oden observou, no texto citado acima, que perfeição deve ser visto pelo conceito bíblico derivado da palavra grega teleiōsis e não de sua versão latinizada perfectus. Ao contrário do significado desta, teleiōsis significa maturidade ou completude. Deste modo, nem as expressões “perfeição cristã” e “inteira santificação” estariam em desacordo com as Escrituras, visto que o objetivo de Deus é que cheguemos ao pleno conhecimento da verdade (1 Tm 2.4), que cheguemos à estatura do varão perfeito (Ef 4.13) e até mesmo que nosso corpo, alma e espírito estejam conservados de modo irrepreensível para a vinda de Cristo (1 Ts 5.23).
Noble também entra nesse campo exegético e explica que as palavras gregas teleios (perfeito) e teleiōsis (perfeição) vêm ambas da raiz telos, que significa “finalidade” e é dela que vem a nossa palavra portuguesa teleologia.[12] Já ficou claro, pelas páginas anteriores, que Wesley tinha uma visão teleológica da santidade e que enfatizava o somos salvo para as boas obras. É o que Chiles também explica ao dizer que “a bondade humana era o objetivo de Wesley, não seu ponto de partida.”[13] Por isso Wesley dizia: “Eu acredito que Deus implanta a justiça a cada um quem Ele a tem imputado.”[14]
A santificação faz parte, portanto, do propósito final (finalidade) de Deus para com a humanidade: a restauração da imago Dei. Essa restauração se inicia com a regeneração e finalizará com a glorificação. Aqui está o significado de perfeição cristã. Tem tudo a ver com o exemplo que o Dr. Noble dá: “o jogador de golfe não apenas faz uma jogada perfeita, uma vez que a bola cai no buraco; mesmo enquanto a bola navega maravilhosamente pelo ar, ela é uma jogada ‘perfeita.’ Na verdade, apenas porque ela é uma jogada ‘perfeita,’ do momento em que ele bate na bola, é que ela pousa no buraco em única jogada.”[15]



Texto disponível em: COUTO, Vinicius. Em favor do Arminianismo-Wesleyano: um estudo bíblico, teológico e exegético de sua relevância na contemporaneidade. São Paulo: Reflexão, 2016, pp. 188-194.
[1] WILEY, Orton. Introdução à teologia cristã. Campinas: CNP, 2009, p. 309.
[2] HSTING, James. Encyclopedia of Religion and Ethic. New York: Charles Scribner’s Sons, 1928, p. 181.
[3] JENNEY, Timothy. O Espírito Santo e a Santificação. In: HORTON, Stanley (Org.). Teologia Sistemática: uma perspectiva Pentecostal. Rio de Janeiro: CPAD, 1996, p. 407.
[4] ODEN, Thomas. John Wesley’s Scriptural Cristianity: a plain exposition of his teaching on Christian doctrine. Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1994, p. 247.
[5] GREATHOUSE, William. Wholeness in Christ: toward a biblical theology of holiness. Kansas city: Beacon Hill, 1998, p 129.
[6] WESLEY, John. Sermões de John WesleyO Caminho Bíblico da Salvação. São Paulo: Editeo, 2006. 
[7] NOBLE, Thomas. Trindade Santa, Povo Santo: a teologia da perfeição cristã. Maceió: Sal Cultural, 2015, p. 85.
[8] Ibid, p. 88.
[9] REASONER, Vic. As Doutrinas de João Wesley sobre a Teologia da Graça. In: PINNOCK, Clarck; WAGNER, John (Orgs.). Graça Para Todos: a dinâmica arminiana da salvação. São Paulo: Reflexão, 2016, p. 310.
[10] ODEN, Thomas. Op. Cit., 314.
[11] WILEY, Orton. Op. Cit., p. 337.
[12] NOBLE, Thomas. Op. Cit., p. 34.
[13] CHILLES, Robert. Theological Transition in American Metodism: 1790-1935. New York: Abingdon Press, 1965, p. 143.
[14] WESLEY, John. Op. Cit., O Senhor Nossa Retidão.
[15] NOBLE, Thomas. Op. Cit., p. 35

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