sexta-feira, 17 de abril de 2020

Comentários sobre o Artigo de Heber Carlos Campos chamado A Graça Preveniente na Tradição Arminiana/Wesleyana (Parte 2)


           Há cerca de dois anos escrevi, aqui mesmo neste blog, uma pequena resenha não acadêmica acerca do pertinente artigo do Dr. Heber Campos chamado A Graça Preveniente na Tradição Arminiana/Wesleyana (Parte 1) publicado na revista Fides Reformata.. Você pode conferir aqui. Nesta outra breve resenha comentarei sobre a parte dois deste artigo. Tanto na minha resenha anterior quanto nesta eu ressalto a excelente pesquisa do Dr. Campos bem como seu tom amistoso para com a rica tradição armínio-wesleyana, da qual faço parte como pastor ordenado da Igreja Metodista Livre. Vamos aos pontos por mim abordados do seu artigo.
           Campos afirma, logo no início, que, de modo similar no calvinismo, a iniciativa no arminianismo/wesleyanismo sempre é de Deus. Silas Daniel destaca muito bem essa questão, afirmando que “o uso do termo ‘preveniente’ ou ‘precedente’ atrelado ao vocábulo ‘graça’ é apenas para deixar claro que estamos falando de uma ação divina que antecede a conversão”. [1]Logo em seguida, ele transcreve uma citação longa de um texto que ele destaca que é do casal Charles e Dotty Schimitt. Entretanto, não conheço esse casal no meio arminiano nem encontrei o texto no link que o Dr. Campos colocou. Pesquisei e vi que eles são (ou eram) de tradição reformada holandesa. Mas a argumentação do casal Schimitt vai ao encontro do pensamento arminiano. Em defesa do embasamento bíblico para a graça preveniente, o casal cita Jo 8.1.9; 8.44,65; 12.32-33 e Atos 7.51). Campos afirma que esses versículos não tratam de uma graça preveniente, que prepara as pessoas para a salvação, mas sim da própria graça salvadora. Concordo com Campos que Atos 7.51 não trata da graça preveniente, mas trata de outro argumento sólido arminiano, que é sobre a graça resistível.
            Posteriormente, Campos menciona Jeff Paton, William Burt Pope e Thomas Oden para elucidar, muito bem elucidado, que para o arminianismo/wesleyanismo a graça preveniente possibilita que o ser humano se volte para Deus, pois antes da atuação dela o ser humano não tem como fazer isso, e também salienta que a graça preveniente, se não resistida, possibilita mais graça divina ao ser humano.
            O autor destaca, citando Thomas Oden, que a consciência iluminada do ser humano para a salvação não é natural, mas sim, justamente, a atuação da graça preveniente de Deus. Campos, no entanto, afirma que a graça preveniente não é eficiente, pois não leva ao arrependimento. Em seguida, o autor cita Wesley afirmando justamente que a consciência que todos os seres humanos têm não é natural, mas sim uma atuação da graça preveniente. Como Valmir Nascimento destaca no seu livro sobre graça preveniente, esta “é o meio pelo qual Deus, antes de qualquer ação humana, atrai graciosamente o pecador e o capacita espiritualmente para que se arrependa e se converta a Cristo”.[2]
            Campos menciona que os arminianos//wesleyanos não levam até as últimas consequências o porquê do ser humano não crer em Cristo, podendo crer. Ele escreve que provavelmente seja por causa da própria capacidade de escolha que a graça preveniente possibilita. Logo, não há o porquê da indagação do Dr. Campos. É isto mesmo. O ser humano não aceita a Cristo porque não quer, mesmo podendo aceitá-lo.[3] Comentei em outro lugar que a graça preveniente convence as pessoas dos seus pecados, “mas o fato é que o Espírito Santo, através da graça preveniente, convence todas as pessoas do pecado, da justiça e do juízo (Jo 16.8)”.[4] As pessoas que cometem crimes, a não ser que tenham problemas psíquicos, são convencidas de que crimes são errados, mas os comentem mesmo assim. Logo, pessoas atraídas pela graça preveniente, podem crer, mas não creem porque não querem. Como C. S. Lewis afirma, as pessoas no Reino de Deus dirão a Ele, que seja feita a Sua vontade. Entretanto, as pessoas que estarão em condenação, Deus lhes dirá que a vontade delas seja feita.[5]      
            O autor não concorda com esse argumento acerca do ser humano sendo afetado pela graça, esta que desperta a fé dentro dele, poder rejeitá-la. A questão é que Estêvão, como mencionado em Atos 7.51, aborda que os judeus resistiram ao Espírito Santo. Logo, vemos, de acordo com o texto, que a graça pode ser resistida. O mesmo verificamos em Mateus 23.37 e Lucas 7.30, em que, respectivamente, constatamos que Jesus queria atuar salvificamente em Jerusalém, mas eles não quiseram (Jesus quis, mas eles não), e que os fariseus resistiram o propósito de Deus para eles.
            Em um trecho de seu artigo, Campos afirma que Armínio e Wesley criam na depravação total mais que seus seguidores. Infelizmente, esta declaração sobre os seguidores desses dois maiores ícones do arminianismo não é precisa. É desnecessário citar uma quantidade imensa de autores arminianos/wesleyanos que defendem a depravação total. Certamente, esta foi uma declaração imprecisa e insatisfatória na pesquisa do admirável Dr. Campos.
            Campos afirma, e concordo, que a graça preveniente faz com que o arminiano una depravação total e possibilidade de escolha. Na verdade, livre-arbítrio não é um termo preciso, mas sim arbítrio liberto,[6] pois, depois da queda, o ser humano perdeu o livre-arbítrio, ficando com o arbítrio preso, mas a graça de Deus, devido à expiação universal de Cristo, liberta o arbítrio, atuando retroativamente aos que viviam antes de Cristo.
            Há, em seguida, uma citação não de um proponente arminiano, mas sim de um oponente calvinista, John Hendryx, que consta que a graça preveniente nos coloca na posição de neutralidade de livre-arbítrio. Todos os arminianos/wesleyanos creem que a graça sempre está no ser humano, não existindo neutralidade. William Burt Pope, uma das maiores autoridades teológicas na tradição armínio-wesleyana, afirma que a graça preveniente “é a única causa eficiente de todo o bem espiritual no homem; do começo, continuação e consumação da religião na alma humana”.[7]
            Em um momento do artigo, depois de uma leve insinuação de que a depravação total no arminianismo não é verdadeiramente uma depravação, Campos afirma que na ânsia de Armínio, em que ele cita uma declaração deste sobre a graça preveniente, ao tentar se alijar tanto do calvinismo quanto do pelagianismo, não chega a ser diferente do semipelagianismo. Infelizmente, essa declaração de Campos não tem precisão teológica. Como Ivan de Oliveira afirma, no seu livro Pelagianismo e Semipelagianismo, “Pelágio e João Cassiano, respectivamente fundadores do pelagianismo e do semipelagianismo, tinham posições doutrinárias completamente distantes do que defendeu Jacó Armínio, notadamente, no que diz respeito à sua antropologia e hamartiologia”.[8] O pelagianismo afirma que o ser humano não caiu totalmente e não foi atingido pelo pecado original. Os semipelagianos entendem que o ser humano foi atingido pelo pecado original, mas que restou nele livre-arbítrio, sendo que pode se chegar a Deus por iniciativa própria. Isto não condiz com o arminianismo, que afirma que o ser humano caiu totalmente e que não pode, por si só, chegar-se a Deus, sendo, justamente, a graça preveniente de Deus que liberta o arbítrio, fazendo com que o homem se achegue a Deus. É iniciativa somente de Deus!
            Campos afirma que é uma desgraça, e não graça, Deus conceder uma graça que possibilita o ser humano rejeitá-la. As Escrituras não entendem assim. Já foram citados Mateus 23.37, Lucas 7.30 e Atos 7.51 corroborando que Deus toma a iniciativa na salvação humana, mas é rejeitado. Josué 24.15 aborda que Deus dá uma escolha para que Seu povo decida. Em Ezequiel 18.30-32 Deus coloca escolha perante Seu povo. Em João 7.17 Jesus diz que se alguém decidir fazer a vontade de Deus descobrirá se Seu ensino vem dEle. Há muitos outros versículos que afirmam que Deus é quem dá a possibilidade de escolha para o ser humano. Deus é tão soberano que possibilita isso. A. W. Tozer afirmou, defendendo o arbítrio liberto, que “um Deus menos que soberano não poderia dar liberdade moral para suas criaturas. Sentiria medo de fazer isso”.[9]
            Posteriormente, Campos critica a graça preveniente no tocante ao entendimento arminiano/wesleyano de que ela atua restringindo a maldade humana. Ele afirma que ela é diferente da graça comum, pois esta não depende de nenhuma cooperação humana. A questão é que arminianos/wesleyanos entendem justamente que a graça de Deus direciona-se para tudo, para salvação ou para impossibilitar o ser humano de ser tão mau quanto ele é naturalmente, por causa do pecado original.  Como Vinicius Couto afirma, a graça preveniente é irresistível quando ela atua inicialmente no ser humano, mas depois é resistida quando liberta o arbítrio no ser humano.[10]
            Na parte final de seu artigo, o autor afirma que os arminianos não têm coragem de afirmar que a vontade do ser humano é a determinante para que eles sejam salvos ou não, sendo que a graça preveniente de Deus é a penúltima ação no envolvimento da salvação. Jesus mesmo diz que quem quiser pode beber da Água da Vida (Ap 22.17). O ser humano só pode escolher ser salvo ou não porque Deus foi quem estabeleceu assim. Nada foge de seu comando.
            O autor afirma, já no final do artigo, que alguns arminianos creem que aqueles que nunca ouviram o evangelho podem ser salvos se viverem vidas perfeitas. Campos não menciona quais arminianos declararam isso. Seria pertinente ele mencioná-los. Enfim, há arminianos inclusivistas (dentre os quais me incluo), mas nunca li a respeito de que não evangelizados poderiam ser salvos se vivessem vidas perfeitas. Aliás, há calvinistas inclusivistas de renome, como Millard Erickson dentre outros.
            Quero salientar que as duas partes do artigo do Dr. Campos foi bem escrito, mediante suas pressuposições soteriológicas. Demonstou mais conhecimentos do que muitos pastores e demais irmãos e irmãs de tradição wesleyana aqui no Brasil que, infelizmente, conhecem quase nada da teologia de Wesley nem da riquíssima tradição wesleyano. Espero, entretanto, dias melhores para os wesleyanos brasileiros.
            Quando o Dr. Campos escreveu esse artigo, em 2012, o arminianismo no Brasil não tinha um acervo de livros tão grande quanto hoje tem.[11] Por causa disto, Campos não citou livros em português para embasar-se na produção do seu artigo. No entanto, não deixou de pesquisar direto nas fontes (embora haja algumas imprecisões) o que argumentou. Parabenizo o Dr. Campos!




[1] DANIEL, Silas. Arminianismo: A Mecânica da Salvação – Uma Exposição Histórica, Doutrinária e Exegética sobre a Graça de Deus e a Responsabilidade Humana. Rio de Janeiro: CPAD, 2017, p. 366.
[2] NASCIMENTO, Valmir. Graça Preveniente – Um Estudo sobre o Gracioso Agir de Deus para a Salvação Humana. São Paulo: Reflexão, 2006, p. 32.
[3] A expressão “aceitar a Cristo” não é muito bem vista pelos calvinistas conservadores, pois eles entendem que não é nós que aceitamos a Cristo, mas sim Cristo que nos elege incondicionalmente. Entretanto, um calvinista muito famoso e altamente relevante no meio evangélico é Francis Schaeffer. Este em vários de seus livros mencionava positivamente sobre “aceitar a Cristo”. Cf: SCHAEFFER, Francis. Verdadeira Espiritualidade – Uma Vida Ceia de Beleza, que Edifica e Inspira. São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 17, 26, 29, 35, 47, 61, 62, 63, 78, 81, 82, 95, 106, 108, 109, 111, 112, 115, 117, 119, 120, 123, 125, 126, 135, 141, 142, 197, 202, 226, 230. Entendo, contudo, que Schaeffer não era calvinista na soteriologia. Para saber mais a este respeiro, veja: http://marlonmarques.blogspot.com/2020/01/carta-de-edith-schaeffer-esposa-de.html.
[4] MARQUES, Marlon. Salvação Integral – Salvação Pessoal e Social na Teologia de John Wesley. São Paulo: Reflexão, 2017, p. 42.
[5] LEWIS. C. S. O Grande Abismo. São Paulo: Vida, 2006, p. 14.
[6] MARQUES, Marlon. Arminianismo para Vida. São Paulo: Reflexão, 2018, p. 37.
[7] Apud: NASCIMENTO, Valmir. Graça Preveniente – Um Estudo sobre o Gracioso Agir de Deus para a Salvação Humana. São Paulo: Reflexão, 2006, p. 32.
[8] OLIVEIRA, Ivan de. Pelagianismo e Semipelagianismo. São Paulo: Reflexão, 2016, p. 52-53.
[9] TOZER, A. W. El Conocimiento del Dios Santo. Deerfield: Editorial Vida, 1996, p. 122.
[10] COUTO, Vinicius. Em Favor do Arminianismo Wesleyano – Um Estudo Bíblico, Teológico e Exegético de sua Relevância na Contemporaneidade. São Paulo: Reflexão, 2016, p. 170-171.
[11] Sobre este assunto, Cf: COUTO, Vinicius [Org.]. Soberania Divina e Responsabilidade Humana: Ensaios sobre a Teologia Armínio-Wesleyana. São Paulo: Reflexão, 2019, p. 31 a 109. Nestas páginas há três capítulos, escritos por Wellington Mariano, eu e Vinicius Couto, respectivamente, sobre o passado, presente e futuro do arminianismo no Brasil. Dentre o assunto desses capítulos, encontra-se a questão da produção literária arminiana pré e pós 2013.

terça-feira, 14 de abril de 2020

Haverá Uma Ênfase na Tradição Cristã no Próximo Metodismo?

                                 Global Methodism: October 2007

Timothy W. Whitaker  é um bispo aposentado da Igreja Metodista Unida que serviu na área eclesiástica da Flórida.


A Igreja Metodista Unida¹ está à beira de uma grande divisão em 2021. Parece provável que a Igreja se divida em pelo menos dois órgãos principais, com talvez vários outros grupos seguindo seus próprios caminhos por um tempo. Por causa do nosso padrão nas últimas décadas de preferir lutar um com o outro em vez de nos separarmos, não se pode descartar a possibilidade de que ainda exista algum tipo de impasse institucional no próximo ano.

Uma oportunidade para reforma

O que quer que aconteça na Igreja Metodista Unida durante os próximos anos, este é um momento de instabilidade, mas a instabilidade oferece a oportunidade de reforma. Com a reforma, não pretendo apenas fazer as correções institucionais necessárias, como desmantelar uma estrutura de liderança e uma burocracia que carece de responsabilidade, mas recuperar e se apropriar para o nosso tempo da genuína herança wesleyana.²
Atualmente, os metodistas unidos chamam de “wesleyano” qualquer teologia que se encaixe na agenda institucional dominante na América, e realizamos cultos de "faz de conta" por meios de graça wesleyanos, como a reunião de classe, enquanto confiamos em estratégias tecnocráticas para “renovar” a Igreja. Depois de mais de quinze anos de teoria organizacional, teoria da liderança e palavras de efeito, a Igreja continuou a declinar rapidamente e também a se desintegrar porque esquecemos que a alma da Igreja é sua vida espiritual e teológica, e não o "mundos dos negócios lucrativos" de sua existência institucional.
Um ponto positivo é que tivemos muitas décadas de estudos da história e teologia wesleyana, mas estranhamente esse academicismo não gerou um movimento de apropriação para a Igreja hoje da maneira wesleyana de fazer e viver como discípulos de Jesus Cristo. Os estudiosos fizeram seu trabalho, mas não tiveram uma Igreja capaz de receber seu academicismo e usá-lo implementando uma reforma espiritual e teológica da vida da Igreja de acordo com o espírito wesleyano. Existe uma desconexão entre a pesquisa estimulante dos estudiosos wesleyanos e a confiança da Igreja Metodista Unida em técnicas estéreis para despertar a adesão à vida e alcançar o coração das pessoas que não ouviram o evangelho proclamado como uma notícia real do Deus vivo.

A herança wesleyana com substância católica

Como esse momento de instabilidade é uma oportunidade para recuperar a genuína herança wesleyana, desejo apenas levantar uma preocupação que afirmo ser absolutamente essencial para uma igreja metodista e qualquer substância católica de comunhão cristã.
Este termo "substância católica" é emprestado do teólogo protestante Paul Tillich. No volume três de sua teologia sistemática, Tillich afirmou que o "princípio protestante" da reforma precisa ser acompanhado por uma "substância católica". Pego emprestado o termo de Tillich, mas o defino do meu jeito.
A "substância católica" pode ser entendida como o depósito histórico tradicional vivo da Tradição Cristã Ecumênica. Inclui rituais do Santo Batismo e da Santa Eucaristia; o ano litúrgico cristão; práticas e formas litúrgicas; a regra de fé incorporada pelo credo universal de Nicéia e pelo credo dos apóstolos ocidentais; os decretos doutrinais dos sete concílios ecumênicos de 325 a 787 da Era Cristã (especialmente os cinco primeiros - Nicéia, Constantinopla, Éfeso, Calcedônia e Constantinopla II); os escritos dos pais da igreja; a vida e os escritos de homens e mulheres santos, e uma rica herança de sabedoria e práticas espirituais nas tradições cristãs orientais e ocidentais de espiritualidade.
Emprego o "c" com letras minúsculas ao escrever “substância católica” porque constitui uma tradição incorporada por muitas comunhões e instituições cristãs.
Nós, metodistas, recebemos uma herança que nos dá uma direção clara sobre uma maneira de ser igreja. Este caminho inclui o ensino espiritual e teológico dos Sermões Padrões de John Wesley  e Notas sobre o Novo Testamento  e os hinos de Charles Wesley; engendrar conversão e crescimento em santidade por meio de pequenos grupos e serviço aos pobres; e liturgias metodistas distintivas, incluindo o Serviço da Aliança, que instrui o cristão a participar da total entrega de Cristo a Deus, e as festas de amor, que cultivam uma cultura de testemunho pessoal. Essa herança precisa ser recuperada. Contudo, também devemos estar cientes de que a herança wesleyana repousa sobre um fundamento de substância católica - toda a tradição da fé apostólica e católica.
Não haveria um "homem apostólico", como alguns metodistas descreveram o Sr. Wesley, a menos que houvesse apóstolos escolhidos por Jesus Cristo para ser o fundamento de sua igreja. Não haveria Sermões  e Notas Padrões sem o cânon das Escrituras da igreja cristã. Não haveria hinos e liturgias metodistas sem a tradição litúrgica da tradição universal da igreja cristã. Não haveria igreja metodista com seu próprio caminho distinto a partir do século dezoito, a menos que houvesse uma igreja cristã instituída por Jesus Cristo por meio de seus apóstolos e constituída pelo Espírito Santo no primeiro século da Era de Cristo.
John e Charles Wesley são os pais da igreja do Metodismo. O Espírito Santo os inspirou e os levou a descobrir um movimento que provou ser uma maneira de transformar vidas e renovar a igreja. Mas devemos sempre lembrar que eles próprios eram sacerdotes em uma igreja católica, a Igreja da Inglaterra. A atividade criativa dos Wesley de evangelismo e criação ocorreu dentro do contexto da liturgia, doutrina e ordem católicas.
Em sua contribuição para a Biblioteca do Pensamento Cristão de John Wesley, Albert C Outler talvez tenha marcado o início de um ressurgimento dos estudos wesleyanos. Em seu prefácio a este volume de seleções dos escritos de John Wesley, juntamente com introduções e notas editoriais, Outler observa: “Pode-se aplicar um rótulo levemente confuso a essa perspectiva doutrinária distinta: o catolicismo evangélico. Sua fonte imediata mais importante no pensamento de Wesley foi a literatura teológica anglicana, na qual ele mergulhou em Oxford e na Geórgia. Sua fonte mais profunda era a Bíblia e sua interpretação pelos antigos Padres da Igreja.
Penso que há uma tendência dos metodistas posteriores de tomar como certa a substância católica que caracteriza tanto a Igreja na qual os Wesley serviam como sacerdotes quanto sua própria teologia e espiritualidade. Qualquer comunhão cristã que seja conscientemente wesleyana ou metodista tem a responsabilidade não apenas de provar a distinta herança wesleyana, mas também de beber profundamente do poço da substância católica, a tradição viva da fé apostólica e católica.
Para os metodistas que realmente entendem a história dos Wesley e de sua fé, os conceitos de ser um "movimento" e de ser igreja nunca se opõem, mas sempre andam de mãos dadas. Sim, o caminho wesleyano é sempre um movimento do Espírito Santo no coração humano e na vida da igreja, mas esse caminho pressupõe e precisa da substância de uma igreja que é solidamente construída sobre o evangelho e toda a tradição cristã.

Recuperando a substância católica no próximo metodismo

Como podemos recuperar a substância católica junto com o caminho wesleyano no próximo metodismo?
Devemos estar cientes de que a herança wesleyana não é um substituto ou uma alternativa à tradição cristã ecumênica histórica, mas constitui apenas uma maneira de se apropriar da tradição viva da fé apostólica e católica. Embora isso pareça óbvio demais, essa é uma observação muito necessária, simplesmente porque há uma tendência entre os metodistas de pensar que podemos tomar como certa a substância católica sobre a qual a herança wesleyana se apóia. Se temos que dizer isso, devemos sempre reconhecer que, antes de tudo, somos cristãos e, somente então, somos metodistas. Como todos os outros cristãos, também temos a responsabilidade de conhecer e viver de acordo com a tradição viva da fé apostólica e católica.

Reforma da liturgia

O centro da vida da igreja é a adoração de um Deus, o Pai, e um Senhor, Jesus Cristo, em um Espírito (cf. 1 Coríntios 8:6, 12:1-13; Efésios 4:4-5 ) Desde o início, a igreja viveu sua adoração comum no dia do Senhor, e todas as suas ações fluíram de sua adoração. As ênfases metodistas distintivas no evangelismo e serviço devem ser fundamentadas na adoração. Jesus disse que “o maior e o primeiro mandamento” é: “Amarás o Senhor teu Deus com todo o coração, com toda a alma e com toda a mente” (cf. Mateus 22: 34-37). Então Jesus acrescentou que existe “um segundo [mandamento] como esse”: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (cf. Mateus 22: 39-40). Com nossas ênfases em "fazer o bem" e "missão,
Nem tudo o que é chamado “adoração” hoje é realmente adoração de acordo com a tradição cristã ecumênica histórica. Antes de iniciarmos o próximo metodismo, precisamos de uma avaliação séria do que estamos fazendo em nossos cultos de adoração. Atualmente, há um colapso na disciplina sobre como a adoração é ordenada e liderada. Apesar do fato de John Wesley ter apresentado o culto de domingo dos metodistas na América do Norte, uma versão da liturgia dominical da Igreja da Inglaterra para os metodistas americanos, não é tradição metodista americana exigir que todos os clérigos e congregações sigam uma liturgia uniforme, mas mesmo no metodismo americano sempre houve requisitos para aderir ao “ritual” oficial da Igreja e esperar que o clero e as congregações respeitem certas normas.
Deveria haver alguma liberdade para o clero e as congregações se adaptarem às suas próprias comunidades locais, mas apenas dentro dos limites de uma prática litúrgica comum, incluindo a estrita adesão aos ritos pelos sacramentos e outros serviços, como casamentos e funerais.
O cerne da reforma do culto metodista deve ser a celebração da Eucaristia todos os domingos - uma das marcas da tradição cristã ecumênica histórica e da distinta herança wesleyana. Nossa prática deve ser guiada pelo sermão de John Wesley, O dever da comunhão constante, e nossa espiritualidade deve ser nutrida pelos muitos hinos eucarísticos de Charles Wesley.
Há pouco tempo, a vida das congregações metodistas girava em torno de uma liturgia de domingo pela manhã, na qual eram celebrados os poderosos atos de Deus, um culto de domingo à noite quando um convite evangelístico era oferecido a todas as pessoas e uma reunião de oração na quarta-feira que consistia na exposição das escrituras. e intercessão pelo mundo, pela igreja e pelos seus membros. Quando uma enxurrada de atividades que não são de culto domina a rodada semanal da vida de uma congregação, a vida da igreja é distorcida de tornar-se um “sacerdócio real” (1 Pedro 2:9) e de tornar-se uma organização ocupada. A questão não é que devemos retornar a um padrão que serviu à igreja há várias gerações, mas que devemos aprender com as práticas passadas como a vida da igreja é ordenada de acordo com um ritmo de culto e oração contínuos dos quais fluem fiéis vivendo no mundo.
Há uma pergunta pesada que é feita a todas as pessoas que são ordenadas para o ministério na Igreja Metodista Unida. A questão é: “Você será leal à Igreja Metodista Unida, aceitando e mantendo sua ordem, liturgia, doutrina e disciplina, defendendo-a contra todas as doutrinas contrárias à Santa Palavra de Deus e comprometendo-se a prestar contas com os que servem com você, e ao bispo e àqueles designados para supervisionar seu ministério?” O colapso da disciplina em nossa Igreja nos últimos tempos é notório, mas não devemos deixar de enfatizar o que todos os clérigos devem fazer, a saber, um voto solene de aceitar e sustentar a liturgia  da Igreja. Isso só acontecerá se a Igreja  tiver uma liturgia e se essa liturgia estiver fundamentada na tradição cristã ecumênica histórica.

Doutrina de ensino

Liturgia, adoração a Deus e doutrina, ensino da igreja, estão entrelaçadas. Por um lado, a doutrina deriva, em certa medida, da liturgia, como demonstrado pelo fato de que alguns dos maiores textos cristológicos do Novo Testamento são hinológicos, por exemplo, Filipenses 2:6-11, Colossenses 1:15-20, João 1:1-18. Por outro lado, a doutrina molda a liturgia para que haja louvor correto, ordenado de acordo com a revelação da relação de Deus conosco. Como uma preocupação particular, uma das razões pelas quais o Credo Niceno ou o Credo dos Apóstolos deve ser recitado todos os domingos é porque a liturgia é a escola da igreja, e os membros precisam conhecer a regra de fé da igreja de cor.
A interação entre liturgia e doutrina indica que a doutrina é importante não apenas porque consiste em pensar e falar corretamente sobre teologia, mas porque a doutrina é essencial para o louvor correto ou a adoração a Deus "em espírito e em verdade" (João 4:24). Não podemos adorar e estar em um relacionamento correto com Deus, a menos que nossa liturgia seja ordenada de acordo com a verdade que Deus nos revelou. A palavra ortodoxia , que significa “louvor correto”, é geralmente definida como adesão à doutrina da igreja, mas a palavra é um lembrete de que o verdadeiro propósito de ensinar a doutrina da igreja é permitir que os membros da igreja realmente saibam Deus e adorar a Deus corretamente.
O ensino da doutrina ortodoxa é essencial para a saúde espiritual da igreja e de seus membros. Por que há tanta descrença, falta de satisfação espiritual e dissensão em nossa Igreja? Uma razão para a inquietação na Igreja é que os líderes substituíram q doutrina da Igreja pelas suas próprias agendas teológicas. Quando opiniões e sentimentos pessoais são ensinados em vez da doutrina da Igreja - seja na classe da Escola Dominical, no púlpito ou numa palestra no seminário -, o corpo de Cristo é ferido, e não fortalecido.
Em seu livro A Identidade da Igreja, os teólogos anglicanos AT e RPC Hanson observam: “Reduzir a doutrina cristã às interpretações individuais, idéias e caprichos de cada teólogo e, finalmente, de cada grupo cristão julgamento arbitrário individual dos cristãos, que é o resultado lógico de muita teologia contemporânea, é de fato dissolver o cristianismo.” Eles acrescentam: “Não é a Bíblia que une os cristãos, mas a tradição da igreja em interpretar a Bíblia, como a história do movimento ecumênico mostrou. O que precisamos é de um acordo sobre doutrina, sobre o que ensinamos quando não estamos apenas repetindo as palavras da Bíblia.” Eles oferecem um definição de ortodoxia como o ensino de 1) a Trindade; 2) a Encarnação; 3) a Expiação; 4) a igreja; 5) e os dois sacramentos do batismo e da sagrada comunhão. Essa definição é um bom ponto de partida para identificar os fundamentos da doutrina ortodoxa.
Por uma questão prática, a renovação da ortodoxia na igreja envolve várias práticas.
Um projeto importante é recuperar a catequese (“instrução oral”), o nome que a igreja primitiva e antiga usava para o ensino sério da doutrina e o modo de vida da igreja para as pessoas que procuravam ser batizadas.
Além disso, deve haver disciplina no que é ensinado em uma congregação. A igreja do futuro será forte em sua fé e testemunhará apenas se as pessoas forem nutridas por um sólido ensino doutrinário. A piedade superficial e sentimental não substitui a firmezqa doutrinária. A fé da igreja é prejudicada e sua unidade é ameaçada quando indivíduos ou grupos ensinam uma teologia doentia que é contrária à ortodoxia.
O púlpito deve ser o local comum em que uma congregação aprende a pensar teologicamente de acordo com a rica e profunda Tradição da Igreja. Em seu livro, com seu título sugestivo, O Imperativo Reformado: o que a igreja tem a dizer que ninguém mais pode dizer (Westminster Press, 1988), o teólogo presbiteriano John H. Leith escreve: “A principal fonte do mal-estar da igreja ... é a perda de uma mensagem cristã distinta e da competência teológica e bíblica que tornou eficaz a sua pregação. Os sermões falham em mediar a presença e a graça de Deus. Muitos sermões são exortações morais, que podem ser ouvidas com maior habilidade nos diversos clubes de encontros. Muitos sermões são julgamentos políticos e econômicos da sociedade, que foram apresentados com maior sabedoria e paixão em convenções políticas. Muitos sermões oferecem terapias pessoais, que podem ser melhor fornecidas por psiquiatras bem treinados. A única habilidade que o pregador tem - ou a igreja, para esse assunto - que não é encontrada com maior excelência em outro lugar é a teologia, em particular a habilidade de interpretar e aplicar a Palavra de Deus em sermão, ensino e cuidado pastoral. Este é o grande serviço que o ministro e a igreja podem prestar ao mundo. Por que alguém deveria ir à igreja para encontrar o que pode ser melhor encontrado em outro lugar?”
O ensino e a pregação doutrinais são parte integrante da função educativa da graça curadora de Deus na vida espiritual da igreja e de seus membros. De acordo com a tradução de Lucas Timothy Johnson de Tito 2: 11-14 em seu livro Cartas aos Representantes de Paulo, o apóstolo Paulo diz: “Porque a graça de Deus apareceu. Dá salvação a todas as pessoas. Ela nos educa para que, depois de rejeitar a impiedade e os desejos mundanos, possamos viver prudentemente, com retidão e de maneira piedosa durante o tempo presente, enquanto aguardamos a bendita esperança e o aparecimento da glória do grande Deus e de nosso Salvador Jesus Cristo. Ele se entregou por nós, para nos resgatar de todo tipo de ilegalidade e purificar para si um povo especial que estava ansioso por fazer boas ações. ”

Um pedido de substância católica

A divisão entre metodistas unidos é geralmente descrita como um abismo entre progressistas e evangélicos. Há uma coisa que ambos os grupos tendem a ter em comum - uma negligência da substância católica.
Os progressistas herdaram a tradição liberal que assume uma posição polêmica contra a tradição saudável da igreja.
Os evangélicos professam ortodoxia, mas os corpos evangélicos têm um registro de serem sementeiros do liberalismo. Provavelmente porque a paixão dos evangélicos pela experiência pessoal os leva a tratar as tradições litúrgicas e doutrinárias da igreja como formas de "ortodoxia morta".

Como Albert Outler observou, John Wesley era um católico evangélico. O próximo Metodismo poderia ser uma igreja em direção para ser evangélica e católica; uma igreja que tem um espírito evangélico em um corpo católico que pratica catequese e culto eucarístico; uma igreja que busca evangelizar pessoas de todas as idades, raças e classes sociais e nutri-las nos ricos recursos da fé apostólica e católica.
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¹ A Igreja Metodista Unida está em vias de divisão por causa da questão do matrimônio homoafetivo. Os metodistas ortodoxos são contra, e os "metodistas" liberais são a favor.
² Todas as palavras em em destaque azulado não constam no original, mas sim um recurso estilístico e de destaque na tradução. (NdT)
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