Há cerca de dois anos escrevi, aqui mesmo neste blog, uma
pequena resenha não acadêmica acerca do pertinente artigo do Dr. Heber Campos chamado A Graça Preveniente na Tradição
Arminiana/Wesleyana (Parte 1) publicado na revista Fides Reformata.. Você pode conferir aqui. Nesta outra breve
resenha comentarei sobre a parte dois deste artigo. Tanto na minha resenha anterior
quanto nesta eu ressalto a excelente pesquisa do Dr. Campos bem como seu tom
amistoso para com a rica tradição armínio-wesleyana, da qual faço parte como
pastor ordenado da Igreja Metodista Livre. Vamos aos pontos por mim abordados
do seu artigo.
Campos afirma,
logo no início, que, de modo similar no calvinismo, a iniciativa no
arminianismo/wesleyanismo sempre é de Deus. Silas Daniel destaca muito bem essa
questão, afirmando que “o uso do termo ‘preveniente’ ou ‘precedente’ atrelado
ao vocábulo ‘graça’ é apenas para deixar claro que estamos falando de uma ação
divina que antecede a conversão”. [1]Logo em seguida, ele
transcreve uma citação longa de um texto que ele destaca que é do casal Charles
e Dotty Schimitt. Entretanto, não conheço esse casal no meio arminiano nem
encontrei o texto no link que o Dr. Campos colocou. Pesquisei e vi que eles são
(ou eram) de tradição reformada holandesa. Mas a argumentação do casal Schimitt
vai ao encontro do pensamento arminiano. Em defesa do embasamento bíblico para
a graça preveniente, o casal cita Jo 8.1.9; 8.44,65; 12.32-33 e Atos 7.51).
Campos afirma que esses versículos não tratam de uma graça preveniente, que
prepara as pessoas para a salvação, mas sim da própria graça salvadora.
Concordo com Campos que Atos 7.51 não trata da graça preveniente, mas trata de
outro argumento sólido arminiano, que é sobre a graça resistível.
Posteriormente,
Campos menciona Jeff Paton, William Burt Pope e Thomas Oden para elucidar,
muito bem elucidado, que para o arminianismo/wesleyanismo a graça preveniente
possibilita que o ser humano se volte para Deus, pois antes da atuação dela o
ser humano não tem como fazer isso, e também salienta que a graça preveniente,
se não resistida, possibilita mais graça divina ao ser humano.
O autor
destaca, citando Thomas Oden, que a consciência iluminada do ser humano para a
salvação não é natural, mas sim, justamente, a atuação da graça preveniente de
Deus. Campos, no entanto, afirma que a graça preveniente não é eficiente, pois
não leva ao arrependimento. Em seguida, o autor cita Wesley afirmando
justamente que a consciência que todos os seres humanos têm não é natural, mas
sim uma atuação da graça preveniente. Como Valmir Nascimento destaca no seu
livro sobre graça preveniente, esta “é o meio pelo qual Deus, antes de qualquer
ação humana, atrai graciosamente o pecador e o capacita espiritualmente para
que se arrependa e se converta a Cristo”.[2]
Campos
menciona que os arminianos//wesleyanos não levam até as últimas consequências o
porquê do ser humano não crer em Cristo, podendo crer. Ele escreve que
provavelmente seja por causa da própria capacidade de escolha que a graça
preveniente possibilita. Logo, não há o porquê da indagação do Dr. Campos. É
isto mesmo. O ser humano não aceita a Cristo porque não quer, mesmo podendo
aceitá-lo.[3] Comentei em outro lugar
que a graça preveniente convence as pessoas dos seus pecados, “mas o fato é que
o Espírito Santo, através da graça preveniente, convence todas as pessoas do
pecado, da justiça e do juízo (Jo 16.8)”.[4] As pessoas que cometem
crimes, a não ser que tenham problemas psíquicos, são convencidas de que crimes
são errados, mas os comentem mesmo assim. Logo, pessoas atraídas pela graça
preveniente, podem crer, mas não creem porque não querem. Como C. S. Lewis
afirma, as pessoas no Reino de Deus dirão a Ele, que seja feita a Sua vontade.
Entretanto, as pessoas que estarão em condenação, Deus lhes dirá que a vontade
delas seja feita.[5]
O autor não
concorda com esse argumento acerca do ser humano sendo afetado pela graça, esta
que desperta a fé dentro dele, poder rejeitá-la. A questão é que Estêvão, como
mencionado em Atos 7.51, aborda que os judeus resistiram ao Espírito Santo.
Logo, vemos, de acordo com o texto, que a graça pode ser resistida. O mesmo
verificamos em Mateus 23.37 e Lucas 7.30, em que, respectivamente, constatamos
que Jesus queria atuar salvificamente em Jerusalém, mas eles não quiseram
(Jesus quis, mas eles não), e que os fariseus resistiram o propósito de Deus
para eles.
Em um
trecho de seu artigo, Campos afirma que Armínio e Wesley criam na depravação
total mais que seus seguidores. Infelizmente, esta declaração sobre os
seguidores desses dois maiores ícones do arminianismo não é precisa. É
desnecessário citar uma quantidade imensa de autores arminianos/wesleyanos que
defendem a depravação total. Certamente, esta foi uma declaração imprecisa e
insatisfatória na pesquisa do admirável Dr. Campos.
Campos
afirma, e concordo, que a graça preveniente faz com que o arminiano una
depravação total e possibilidade de escolha. Na verdade, livre-arbítrio não é
um termo preciso, mas sim arbítrio liberto,[6] pois, depois da queda, o
ser humano perdeu o livre-arbítrio, ficando com o arbítrio preso, mas a graça
de Deus, devido à expiação universal de Cristo, liberta o arbítrio, atuando
retroativamente aos que viviam antes de Cristo.
Há, em
seguida, uma citação não de um proponente arminiano, mas sim de um oponente
calvinista, John Hendryx, que consta que a graça preveniente nos coloca na posição
de neutralidade de livre-arbítrio. Todos os arminianos/wesleyanos creem que a
graça sempre está no ser humano, não existindo neutralidade. William Burt Pope,
uma das maiores autoridades teológicas na tradição armínio-wesleyana, afirma
que a graça preveniente “é a única causa eficiente de todo o bem espiritual no
homem; do começo, continuação e consumação da religião na alma humana”.[7]
Em um
momento do artigo, depois de uma leve insinuação de que a depravação total no
arminianismo não é verdadeiramente uma depravação, Campos afirma que na ânsia
de Armínio, em que ele cita uma declaração deste sobre a graça preveniente, ao
tentar se alijar tanto do calvinismo quanto do pelagianismo, não chega a ser
diferente do semipelagianismo. Infelizmente, essa declaração de Campos não tem
precisão teológica. Como Ivan de Oliveira afirma, no seu livro Pelagianismo e
Semipelagianismo, “Pelágio e João Cassiano, respectivamente fundadores do
pelagianismo e do semipelagianismo, tinham posições doutrinárias completamente
distantes do que defendeu Jacó Armínio, notadamente, no que diz respeito à sua
antropologia e hamartiologia”.[8] O pelagianismo afirma que
o ser humano não caiu totalmente e não foi atingido pelo pecado original. Os
semipelagianos entendem que o ser humano foi atingido pelo pecado original, mas
que restou nele livre-arbítrio, sendo que pode se chegar a Deus por iniciativa
própria. Isto não condiz com o arminianismo, que afirma que o ser humano caiu
totalmente e que não pode, por si só, chegar-se a Deus, sendo, justamente, a
graça preveniente de Deus que liberta o arbítrio, fazendo com que o homem se
achegue a Deus. É iniciativa somente de Deus!
Campos
afirma que é uma desgraça, e não graça, Deus conceder uma graça que possibilita
o ser humano rejeitá-la. As Escrituras não entendem assim. Já foram citados
Mateus 23.37, Lucas 7.30 e Atos 7.51 corroborando que Deus toma a iniciativa na
salvação humana, mas é rejeitado. Josué 24.15 aborda que Deus dá uma escolha
para que Seu povo decida. Em Ezequiel 18.30-32 Deus coloca escolha perante Seu
povo. Em João 7.17 Jesus diz que se alguém decidir fazer a vontade de Deus descobrirá
se Seu ensino vem dEle. Há muitos outros versículos que afirmam que Deus é quem
dá a possibilidade de escolha para o ser humano. Deus é tão soberano que
possibilita isso. A. W. Tozer afirmou, defendendo o arbítrio liberto, que “um
Deus menos que soberano não poderia dar liberdade moral para suas criaturas.
Sentiria medo de fazer isso”.[9]
Posteriormente,
Campos critica a graça preveniente no tocante ao entendimento
arminiano/wesleyano de que ela atua restringindo a maldade humana. Ele afirma
que ela é diferente da graça comum, pois esta não depende de nenhuma cooperação
humana. A questão é que arminianos/wesleyanos entendem justamente que a graça
de Deus direciona-se para tudo, para salvação ou para impossibilitar o ser
humano de ser tão mau quanto ele é naturalmente, por causa do pecado
original. Como Vinicius Couto afirma, a
graça preveniente é irresistível quando ela atua inicialmente no ser humano,
mas depois é resistida quando liberta o arbítrio no ser humano.[10]
Na parte
final de seu artigo, o autor afirma que os arminianos não têm coragem de
afirmar que a vontade do ser humano é a determinante para que eles sejam salvos
ou não, sendo que a graça preveniente de Deus é a penúltima ação no
envolvimento da salvação. Jesus mesmo diz que quem quiser pode beber da Água da
Vida (Ap 22.17). O ser humano só pode escolher ser salvo ou não porque Deus foi
quem estabeleceu assim. Nada foge de seu comando.
O autor
afirma, já no final do artigo, que alguns arminianos creem que aqueles que
nunca ouviram o evangelho podem ser salvos se viverem vidas perfeitas. Campos
não menciona quais arminianos declararam isso. Seria pertinente ele
mencioná-los. Enfim, há arminianos inclusivistas (dentre os quais me incluo),
mas nunca li a respeito de que não evangelizados poderiam ser salvos se
vivessem vidas perfeitas. Aliás, há calvinistas inclusivistas de renome, como
Millard Erickson dentre outros.
Quero
salientar que as duas partes do artigo do Dr. Campos foi bem escrito, mediante
suas pressuposições soteriológicas. Demonstou mais conhecimentos do que muitos
pastores e demais irmãos e irmãs de tradição wesleyana aqui no Brasil que,
infelizmente, conhecem quase nada da teologia de Wesley nem da riquíssima tradição
wesleyano. Espero, entretanto, dias melhores para os wesleyanos brasileiros.
Quando o
Dr. Campos escreveu esse artigo, em 2012, o arminianismo no Brasil não tinha um
acervo de livros tão grande quanto hoje tem.[11] Por causa disto, Campos
não citou livros em português para embasar-se na produção do seu artigo. No entanto,
não deixou de pesquisar direto nas fontes (embora haja algumas imprecisões) o
que argumentou. Parabenizo o Dr. Campos!
[1]
DANIEL, Silas. Arminianismo: A Mecânica
da Salvação – Uma Exposição Histórica, Doutrinária e Exegética sobre a Graça de
Deus e a Responsabilidade Humana. Rio de Janeiro: CPAD, 2017, p. 366.
[2]
NASCIMENTO, Valmir. Graça Preveniente –
Um Estudo sobre o Gracioso Agir de Deus para a Salvação Humana. São Paulo:
Reflexão, 2006, p. 32.
[3]
A expressão “aceitar a Cristo” não é muito bem vista pelos calvinistas conservadores,
pois eles entendem que não é nós que aceitamos a Cristo, mas sim Cristo que nos
elege incondicionalmente. Entretanto, um calvinista muito famoso e altamente
relevante no meio evangélico é Francis Schaeffer. Este em vários de seus livros
mencionava positivamente sobre “aceitar a Cristo”. Cf: SCHAEFFER, Francis. Verdadeira Espiritualidade – Uma Vida Ceia
de Beleza, que Edifica e Inspira. São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 17,
26, 29, 35, 47, 61, 62, 63, 78, 81, 82, 95, 106, 108, 109, 111, 112, 115, 117,
119, 120, 123, 125, 126, 135, 141, 142, 197, 202, 226, 230. Entendo, contudo,
que Schaeffer não era calvinista na soteriologia. Para saber mais a este
respeiro, veja: http://marlonmarques.blogspot.com/2020/01/carta-de-edith-schaeffer-esposa-de.html.
[4]
MARQUES, Marlon. Salvação Integral –
Salvação Pessoal e Social na Teologia de John Wesley. São Paulo: Reflexão,
2017, p. 42.
[5]
LEWIS. C. S. O Grande Abismo. São
Paulo: Vida, 2006, p. 14.
[6]
MARQUES, Marlon. Arminianismo para Vida.
São Paulo: Reflexão, 2018, p. 37.
[7]
Apud: NASCIMENTO, Valmir. Graça
Preveniente – Um Estudo sobre o Gracioso Agir de Deus para a Salvação Humana.
São Paulo: Reflexão, 2006, p. 32.
[8]
OLIVEIRA, Ivan de. Pelagianismo e
Semipelagianismo. São Paulo: Reflexão, 2016, p. 52-53.
[9]
TOZER, A. W. El Conocimiento del Dios
Santo. Deerfield: Editorial Vida, 1996, p. 122.
[10]
COUTO, Vinicius. Em Favor do
Arminianismo Wesleyano – Um Estudo Bíblico, Teológico e Exegético de sua
Relevância na Contemporaneidade. São Paulo: Reflexão, 2016, p. 170-171.
[11]
Sobre este assunto, Cf: COUTO, Vinicius [Org.]. Soberania Divina e Responsabilidade Humana: Ensaios sobre a Teologia
Armínio-Wesleyana. São Paulo: Reflexão, 2019, p. 31 a 109. Nestas páginas
há três capítulos, escritos por Wellington Mariano, eu e Vinicius Couto,
respectivamente, sobre o passado, presente e futuro do arminianismo no Brasil.
Dentre o assunto desses capítulos, encontra-se a questão da produção literária
arminiana pré e pós 2013.