sexta-feira, 17 de abril de 2020

Comentários sobre o Artigo de Heber Carlos Campos chamado A Graça Preveniente na Tradição Arminiana/Wesleyana (Parte 2)


           Há cerca de dois anos escrevi, aqui mesmo neste blog, uma pequena resenha não acadêmica acerca do pertinente artigo do Dr. Heber Campos chamado A Graça Preveniente na Tradição Arminiana/Wesleyana (Parte 1) publicado na revista Fides Reformata.. Você pode conferir aqui. Nesta outra breve resenha comentarei sobre a parte dois deste artigo. Tanto na minha resenha anterior quanto nesta eu ressalto a excelente pesquisa do Dr. Campos bem como seu tom amistoso para com a rica tradição armínio-wesleyana, da qual faço parte como pastor ordenado da Igreja Metodista Livre. Vamos aos pontos por mim abordados do seu artigo.
           Campos afirma, logo no início, que, de modo similar no calvinismo, a iniciativa no arminianismo/wesleyanismo sempre é de Deus. Silas Daniel destaca muito bem essa questão, afirmando que “o uso do termo ‘preveniente’ ou ‘precedente’ atrelado ao vocábulo ‘graça’ é apenas para deixar claro que estamos falando de uma ação divina que antecede a conversão”. [1]Logo em seguida, ele transcreve uma citação longa de um texto que ele destaca que é do casal Charles e Dotty Schimitt. Entretanto, não conheço esse casal no meio arminiano nem encontrei o texto no link que o Dr. Campos colocou. Pesquisei e vi que eles são (ou eram) de tradição reformada holandesa. Mas a argumentação do casal Schimitt vai ao encontro do pensamento arminiano. Em defesa do embasamento bíblico para a graça preveniente, o casal cita Jo 8.1.9; 8.44,65; 12.32-33 e Atos 7.51). Campos afirma que esses versículos não tratam de uma graça preveniente, que prepara as pessoas para a salvação, mas sim da própria graça salvadora. Concordo com Campos que Atos 7.51 não trata da graça preveniente, mas trata de outro argumento sólido arminiano, que é sobre a graça resistível.
            Posteriormente, Campos menciona Jeff Paton, William Burt Pope e Thomas Oden para elucidar, muito bem elucidado, que para o arminianismo/wesleyanismo a graça preveniente possibilita que o ser humano se volte para Deus, pois antes da atuação dela o ser humano não tem como fazer isso, e também salienta que a graça preveniente, se não resistida, possibilita mais graça divina ao ser humano.
            O autor destaca, citando Thomas Oden, que a consciência iluminada do ser humano para a salvação não é natural, mas sim, justamente, a atuação da graça preveniente de Deus. Campos, no entanto, afirma que a graça preveniente não é eficiente, pois não leva ao arrependimento. Em seguida, o autor cita Wesley afirmando justamente que a consciência que todos os seres humanos têm não é natural, mas sim uma atuação da graça preveniente. Como Valmir Nascimento destaca no seu livro sobre graça preveniente, esta “é o meio pelo qual Deus, antes de qualquer ação humana, atrai graciosamente o pecador e o capacita espiritualmente para que se arrependa e se converta a Cristo”.[2]
            Campos menciona que os arminianos//wesleyanos não levam até as últimas consequências o porquê do ser humano não crer em Cristo, podendo crer. Ele escreve que provavelmente seja por causa da própria capacidade de escolha que a graça preveniente possibilita. Logo, não há o porquê da indagação do Dr. Campos. É isto mesmo. O ser humano não aceita a Cristo porque não quer, mesmo podendo aceitá-lo.[3] Comentei em outro lugar que a graça preveniente convence as pessoas dos seus pecados, “mas o fato é que o Espírito Santo, através da graça preveniente, convence todas as pessoas do pecado, da justiça e do juízo (Jo 16.8)”.[4] As pessoas que cometem crimes, a não ser que tenham problemas psíquicos, são convencidas de que crimes são errados, mas os comentem mesmo assim. Logo, pessoas atraídas pela graça preveniente, podem crer, mas não creem porque não querem. Como C. S. Lewis afirma, as pessoas no Reino de Deus dirão a Ele, que seja feita a Sua vontade. Entretanto, as pessoas que estarão em condenação, Deus lhes dirá que a vontade delas seja feita.[5]      
            O autor não concorda com esse argumento acerca do ser humano sendo afetado pela graça, esta que desperta a fé dentro dele, poder rejeitá-la. A questão é que Estêvão, como mencionado em Atos 7.51, aborda que os judeus resistiram ao Espírito Santo. Logo, vemos, de acordo com o texto, que a graça pode ser resistida. O mesmo verificamos em Mateus 23.37 e Lucas 7.30, em que, respectivamente, constatamos que Jesus queria atuar salvificamente em Jerusalém, mas eles não quiseram (Jesus quis, mas eles não), e que os fariseus resistiram o propósito de Deus para eles.
            Em um trecho de seu artigo, Campos afirma que Armínio e Wesley criam na depravação total mais que seus seguidores. Infelizmente, esta declaração sobre os seguidores desses dois maiores ícones do arminianismo não é precisa. É desnecessário citar uma quantidade imensa de autores arminianos/wesleyanos que defendem a depravação total. Certamente, esta foi uma declaração imprecisa e insatisfatória na pesquisa do admirável Dr. Campos.
            Campos afirma, e concordo, que a graça preveniente faz com que o arminiano una depravação total e possibilidade de escolha. Na verdade, livre-arbítrio não é um termo preciso, mas sim arbítrio liberto,[6] pois, depois da queda, o ser humano perdeu o livre-arbítrio, ficando com o arbítrio preso, mas a graça de Deus, devido à expiação universal de Cristo, liberta o arbítrio, atuando retroativamente aos que viviam antes de Cristo.
            Há, em seguida, uma citação não de um proponente arminiano, mas sim de um oponente calvinista, John Hendryx, que consta que a graça preveniente nos coloca na posição de neutralidade de livre-arbítrio. Todos os arminianos/wesleyanos creem que a graça sempre está no ser humano, não existindo neutralidade. William Burt Pope, uma das maiores autoridades teológicas na tradição armínio-wesleyana, afirma que a graça preveniente “é a única causa eficiente de todo o bem espiritual no homem; do começo, continuação e consumação da religião na alma humana”.[7]
            Em um momento do artigo, depois de uma leve insinuação de que a depravação total no arminianismo não é verdadeiramente uma depravação, Campos afirma que na ânsia de Armínio, em que ele cita uma declaração deste sobre a graça preveniente, ao tentar se alijar tanto do calvinismo quanto do pelagianismo, não chega a ser diferente do semipelagianismo. Infelizmente, essa declaração de Campos não tem precisão teológica. Como Ivan de Oliveira afirma, no seu livro Pelagianismo e Semipelagianismo, “Pelágio e João Cassiano, respectivamente fundadores do pelagianismo e do semipelagianismo, tinham posições doutrinárias completamente distantes do que defendeu Jacó Armínio, notadamente, no que diz respeito à sua antropologia e hamartiologia”.[8] O pelagianismo afirma que o ser humano não caiu totalmente e não foi atingido pelo pecado original. Os semipelagianos entendem que o ser humano foi atingido pelo pecado original, mas que restou nele livre-arbítrio, sendo que pode se chegar a Deus por iniciativa própria. Isto não condiz com o arminianismo, que afirma que o ser humano caiu totalmente e que não pode, por si só, chegar-se a Deus, sendo, justamente, a graça preveniente de Deus que liberta o arbítrio, fazendo com que o homem se achegue a Deus. É iniciativa somente de Deus!
            Campos afirma que é uma desgraça, e não graça, Deus conceder uma graça que possibilita o ser humano rejeitá-la. As Escrituras não entendem assim. Já foram citados Mateus 23.37, Lucas 7.30 e Atos 7.51 corroborando que Deus toma a iniciativa na salvação humana, mas é rejeitado. Josué 24.15 aborda que Deus dá uma escolha para que Seu povo decida. Em Ezequiel 18.30-32 Deus coloca escolha perante Seu povo. Em João 7.17 Jesus diz que se alguém decidir fazer a vontade de Deus descobrirá se Seu ensino vem dEle. Há muitos outros versículos que afirmam que Deus é quem dá a possibilidade de escolha para o ser humano. Deus é tão soberano que possibilita isso. A. W. Tozer afirmou, defendendo o arbítrio liberto, que “um Deus menos que soberano não poderia dar liberdade moral para suas criaturas. Sentiria medo de fazer isso”.[9]
            Posteriormente, Campos critica a graça preveniente no tocante ao entendimento arminiano/wesleyano de que ela atua restringindo a maldade humana. Ele afirma que ela é diferente da graça comum, pois esta não depende de nenhuma cooperação humana. A questão é que arminianos/wesleyanos entendem justamente que a graça de Deus direciona-se para tudo, para salvação ou para impossibilitar o ser humano de ser tão mau quanto ele é naturalmente, por causa do pecado original.  Como Vinicius Couto afirma, a graça preveniente é irresistível quando ela atua inicialmente no ser humano, mas depois é resistida quando liberta o arbítrio no ser humano.[10]
            Na parte final de seu artigo, o autor afirma que os arminianos não têm coragem de afirmar que a vontade do ser humano é a determinante para que eles sejam salvos ou não, sendo que a graça preveniente de Deus é a penúltima ação no envolvimento da salvação. Jesus mesmo diz que quem quiser pode beber da Água da Vida (Ap 22.17). O ser humano só pode escolher ser salvo ou não porque Deus foi quem estabeleceu assim. Nada foge de seu comando.
            O autor afirma, já no final do artigo, que alguns arminianos creem que aqueles que nunca ouviram o evangelho podem ser salvos se viverem vidas perfeitas. Campos não menciona quais arminianos declararam isso. Seria pertinente ele mencioná-los. Enfim, há arminianos inclusivistas (dentre os quais me incluo), mas nunca li a respeito de que não evangelizados poderiam ser salvos se vivessem vidas perfeitas. Aliás, há calvinistas inclusivistas de renome, como Millard Erickson dentre outros.
            Quero salientar que as duas partes do artigo do Dr. Campos foi bem escrito, mediante suas pressuposições soteriológicas. Demonstou mais conhecimentos do que muitos pastores e demais irmãos e irmãs de tradição wesleyana aqui no Brasil que, infelizmente, conhecem quase nada da teologia de Wesley nem da riquíssima tradição wesleyano. Espero, entretanto, dias melhores para os wesleyanos brasileiros.
            Quando o Dr. Campos escreveu esse artigo, em 2012, o arminianismo no Brasil não tinha um acervo de livros tão grande quanto hoje tem.[11] Por causa disto, Campos não citou livros em português para embasar-se na produção do seu artigo. No entanto, não deixou de pesquisar direto nas fontes (embora haja algumas imprecisões) o que argumentou. Parabenizo o Dr. Campos!




[1] DANIEL, Silas. Arminianismo: A Mecânica da Salvação – Uma Exposição Histórica, Doutrinária e Exegética sobre a Graça de Deus e a Responsabilidade Humana. Rio de Janeiro: CPAD, 2017, p. 366.
[2] NASCIMENTO, Valmir. Graça Preveniente – Um Estudo sobre o Gracioso Agir de Deus para a Salvação Humana. São Paulo: Reflexão, 2006, p. 32.
[3] A expressão “aceitar a Cristo” não é muito bem vista pelos calvinistas conservadores, pois eles entendem que não é nós que aceitamos a Cristo, mas sim Cristo que nos elege incondicionalmente. Entretanto, um calvinista muito famoso e altamente relevante no meio evangélico é Francis Schaeffer. Este em vários de seus livros mencionava positivamente sobre “aceitar a Cristo”. Cf: SCHAEFFER, Francis. Verdadeira Espiritualidade – Uma Vida Ceia de Beleza, que Edifica e Inspira. São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 17, 26, 29, 35, 47, 61, 62, 63, 78, 81, 82, 95, 106, 108, 109, 111, 112, 115, 117, 119, 120, 123, 125, 126, 135, 141, 142, 197, 202, 226, 230. Entendo, contudo, que Schaeffer não era calvinista na soteriologia. Para saber mais a este respeiro, veja: http://marlonmarques.blogspot.com/2020/01/carta-de-edith-schaeffer-esposa-de.html.
[4] MARQUES, Marlon. Salvação Integral – Salvação Pessoal e Social na Teologia de John Wesley. São Paulo: Reflexão, 2017, p. 42.
[5] LEWIS. C. S. O Grande Abismo. São Paulo: Vida, 2006, p. 14.
[6] MARQUES, Marlon. Arminianismo para Vida. São Paulo: Reflexão, 2018, p. 37.
[7] Apud: NASCIMENTO, Valmir. Graça Preveniente – Um Estudo sobre o Gracioso Agir de Deus para a Salvação Humana. São Paulo: Reflexão, 2006, p. 32.
[8] OLIVEIRA, Ivan de. Pelagianismo e Semipelagianismo. São Paulo: Reflexão, 2016, p. 52-53.
[9] TOZER, A. W. El Conocimiento del Dios Santo. Deerfield: Editorial Vida, 1996, p. 122.
[10] COUTO, Vinicius. Em Favor do Arminianismo Wesleyano – Um Estudo Bíblico, Teológico e Exegético de sua Relevância na Contemporaneidade. São Paulo: Reflexão, 2016, p. 170-171.
[11] Sobre este assunto, Cf: COUTO, Vinicius [Org.]. Soberania Divina e Responsabilidade Humana: Ensaios sobre a Teologia Armínio-Wesleyana. São Paulo: Reflexão, 2019, p. 31 a 109. Nestas páginas há três capítulos, escritos por Wellington Mariano, eu e Vinicius Couto, respectivamente, sobre o passado, presente e futuro do arminianismo no Brasil. Dentre o assunto desses capítulos, encontra-se a questão da produção literária arminiana pré e pós 2013.

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